julho 02, 2005

Delírio brasileiro

A todas as receitas de feijoada, para manter o seu espirito excessivo, falta sempre um pormenor: uma ambulância à porta.

Deixemo-nos de histórias e de discussões sobre as calorias, carbo-hidratos, colesterol e outros males que vêm do estômago, ou que Ihe andam ligados: a feijoada anda nesse caminho que fala do direito à felicidade. Aliás, é impossível a felicidade completa sem feijoada (roubo mais uma vez esta frase a uma amiga brasileira, autora de uma das melhores feijoadas de sempre). E, sinceramente, do que fala a feijoada? Do delírio. Do desregramento. Da desordem alimentar. Do carnaval alimentar. Da origem sem raízes. Do excesso. A história do prazer alimentar é feita, também, dessas categorias essenciais. Elas traduzem um estado de delírio digestivo e, se fossemos pessoas correctas e sensatas, nunca comeríamos feijoa­da - a feijoada «à brasileira», a feijoada de varias versões que confrontam os cânones, a feijoa­da repentista, a feijoada que assegura um certo e elevado grau de felicidade.

Se os leitores querem uma feijoada perfeita, sugiro-lhes que vão a São Paulo, onde podem sentar-se a uma mesa do restaurante Bolinha. Aí, tudo rescende à feijoada: do torresminho estaladiço ao caldinho de feijão que antecede a prova das carnes, da linguiça frita ou grelhada à cerveja gelada. Falta, evidentemente, aquilo que o grande Vinicius de Moraes, repetindo Stanislau Ponte Preta, exigia para o final: uma ambulância a porta.

Se querem fazer uma feijoa­da em casa, dentro de portas e dentro do país, eu tenho uma solução aproximada. Em primeiro lugar, o feijão preto, aquele pacotinho de um quilo (fazer feijoa­da com menos de um quilo de feijão é um desperdício - feijoada é um prato para muitas pessoas). Depois, as carnes: fumadas, secas, em enchidos. Como faço eu? Simples. Num almofariz, prepare uma massa com duas cebolas picadas, salsa, dez dentes de alho, um nadinha de coen­tro fresco, duas ou três mala­guetas. Numa panela de pressão disponho o feijão preto, cubro de agua, junto essa massa, as car­nes com osso, a costelinha fumada, a orelha. Tapo e deixo que coza por 15 a 20 minutos.
À parte, numa panela de ferro regulamentar, faço um refogado em azeite, com bastante cebola, a que junto os cubos de carne fumada e os enchidos (linguiça). Mal aloira, junto dois dentes de alho, duas folhas de louro, e o feijão meio cozido que entretanto salta da panela de pressão, devidamente acompanhado do caldo e das suas carnes. Mexo com uma colher de pau e deixo que tudo se misture. Dai a pouco, mal entra em ebulição, retiro cerca de duas conchas de feijão e desfaco-o com um garfo; devolvo à panela, tapo e bebo uma cerve­ja gelada. Deixo que cozinhe, embora possa rectificar com pimenta e malagueta.
Preparo o arroz: frito-o pri­meiro em duas colheres de sopa de azeite, junto três vezes o seu volume em agua e tempero apenas com sal. Simples. Na falta de couve mineirinha, tomo um bom molho de couve-galega e corto-o em tiras finas (dispensando os talos), lavando-o bem. Escaldo a couve em agua fervente, por dois minutos ou menos. Numa frigideira larga junto a três colheres de sopa de azeite uma cebola muito picada, cubos de bacon ou de toucinho (eu dispenso, mas a regra é a regra) e acrescento a couve, salteando-a, mexendo de forma a fritar ligeiramente mas sem perder a sua cor. Nesta altura, frita-se o torresmo, que deve ficar estaladiço e disposto em tacinhas pecaminosas ao lado da feijoada, que entretanto acabou de cozinhar.
Descasque-se uma laranja por pessoa e cortem-se às rodelas. Depois, tem a farofa. Nos nossos supermercados já existe, pronta, embalada e saborosa, importada do Brasil. Use-se com parcimónia de um dietista ou com o à-vontade de um sertanejo. A minha feijoada ficou pronta. E tem mais: independentemente da regra que também manda separar as carnes do feijão, eu gosto assim.

Ingredientes
+ Feijão preto, 1 kg
+ Carnes e enchidos ao gosto do cozinheiro (entrecosto, orelha, linguiça, bacon, toucinho, entrecosto fumado)
+ 3 cebolas
+ 12 dentes de alho
+ louro
+ 3 malaguetas
+ salsa
+ coentro fresco
+ sal, azeite
+ 300 g de arroz
+ Couve-galega (cerca de 500 g)
+ laranja (cerca de 1 kg)
+ Farofa


in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Julho de 2005