Delírio brasileiro
A todas as receitas de feijoada, para manter o seu espirito excessivo, falta sempre um pormenor: uma ambulância à porta.
Deixemo-nos de histórias e de discussões sobre as calorias, carbo-hidratos, colesterol e outros males que vêm do estômago, ou que Ihe andam ligados: a feijoada anda nesse caminho que fala do direito à felicidade. Aliás, é impossível a felicidade completa sem feijoada (roubo mais uma vez esta frase a uma amiga brasileira, autora de uma das melhores feijoadas de sempre). E, sinceramente, do que fala a feijoada? Do delírio. Do desregramento. Da desordem alimentar. Do carnaval alimentar. Da origem sem raízes. Do excesso. A história do prazer alimentar é feita, também, dessas categorias essenciais. Elas traduzem um estado de delírio digestivo e, se fossemos pessoas correctas e sensatas, nunca comeríamos feijoada - a feijoada «à brasileira», a feijoada de varias versões que confrontam os cânones, a feijoada repentista, a feijoada que assegura um certo e elevado grau de felicidade.
Se os leitores querem uma feijoada perfeita, sugiro-lhes que vão a São Paulo, onde podem sentar-se a uma mesa do restaurante Bolinha. Aí, tudo rescende à feijoada: do torresminho estaladiço ao caldinho de feijão que antecede a prova das carnes, da linguiça frita ou grelhada à cerveja gelada. Falta, evidentemente, aquilo que o grande Vinicius de Moraes, repetindo Stanislau Ponte Preta, exigia para o final: uma ambulância a porta.
Se querem fazer uma feijoada em casa, dentro de portas e dentro do país, eu tenho uma solução aproximada. Em primeiro lugar, o feijão preto, aquele pacotinho de um quilo (fazer feijoada com menos de um quilo de feijão é um desperdício - feijoada é um prato para muitas pessoas). Depois, as carnes: fumadas, secas, em enchidos. Como faço eu? Simples. Num almofariz, prepare uma massa com duas cebolas picadas, salsa, dez dentes de alho, um nadinha de coentro fresco, duas ou três malaguetas. Numa panela de pressão disponho o feijão preto, cubro de agua, junto essa massa, as carnes com osso, a costelinha fumada, a orelha. Tapo e deixo que coza por 15 a 20 minutos.
À parte, numa panela de ferro regulamentar, faço um refogado em azeite, com bastante cebola, a que junto os cubos de carne fumada e os enchidos (linguiça). Mal aloira, junto dois dentes de alho, duas folhas de louro, e o feijão meio cozido que entretanto salta da panela de pressão, devidamente acompanhado do caldo e das suas carnes. Mexo com uma colher de pau e deixo que tudo se misture. Dai a pouco, mal entra em ebulição, retiro cerca de duas conchas de feijão e desfaco-o com um garfo; devolvo à panela, tapo e bebo uma cerveja gelada. Deixo que cozinhe, embora possa rectificar com pimenta e malagueta.
Preparo o arroz: frito-o primeiro em duas colheres de sopa de azeite, junto três vezes o seu volume em agua e tempero apenas com sal. Simples. Na falta de couve mineirinha, tomo um bom molho de couve-galega e corto-o em tiras finas (dispensando os talos), lavando-o bem. Escaldo a couve em agua fervente, por dois minutos ou menos. Numa frigideira larga junto a três colheres de sopa de azeite uma cebola muito picada, cubos de bacon ou de toucinho (eu dispenso, mas a regra é a regra) e acrescento a couve, salteando-a, mexendo de forma a fritar ligeiramente mas sem perder a sua cor. Nesta altura, frita-se o torresmo, que deve ficar estaladiço e disposto em tacinhas pecaminosas ao lado da feijoada, que entretanto acabou de cozinhar.
Descasque-se uma laranja por pessoa e cortem-se às rodelas. Depois, tem a farofa. Nos nossos supermercados já existe, pronta, embalada e saborosa, importada do Brasil. Use-se com parcimónia de um dietista ou com o à-vontade de um sertanejo. A minha feijoada ficou pronta. E tem mais: independentemente da regra que também manda separar as carnes do feijão, eu gosto assim.
Ingredientes
+ Feijão preto, 1 kg
+ Carnes e enchidos ao gosto do cozinheiro (entrecosto, orelha, linguiça, bacon, toucinho, entrecosto fumado)
+ 3 cebolas
+ 12 dentes de alho
+ louro
+ 3 malaguetas
+ salsa
+ coentro fresco
+ sal, azeite
+ 300 g de arroz
+ Couve-galega (cerca de 500 g)
+ laranja (cerca de 1 kg)
+ Farofa
in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Julho de 2005
Deixemo-nos de histórias e de discussões sobre as calorias, carbo-hidratos, colesterol e outros males que vêm do estômago, ou que Ihe andam ligados: a feijoada anda nesse caminho que fala do direito à felicidade. Aliás, é impossível a felicidade completa sem feijoada (roubo mais uma vez esta frase a uma amiga brasileira, autora de uma das melhores feijoadas de sempre). E, sinceramente, do que fala a feijoada? Do delírio. Do desregramento. Da desordem alimentar. Do carnaval alimentar. Da origem sem raízes. Do excesso. A história do prazer alimentar é feita, também, dessas categorias essenciais. Elas traduzem um estado de delírio digestivo e, se fossemos pessoas correctas e sensatas, nunca comeríamos feijoada - a feijoada «à brasileira», a feijoada de varias versões que confrontam os cânones, a feijoada repentista, a feijoada que assegura um certo e elevado grau de felicidade.
Se os leitores querem uma feijoada perfeita, sugiro-lhes que vão a São Paulo, onde podem sentar-se a uma mesa do restaurante Bolinha. Aí, tudo rescende à feijoada: do torresminho estaladiço ao caldinho de feijão que antecede a prova das carnes, da linguiça frita ou grelhada à cerveja gelada. Falta, evidentemente, aquilo que o grande Vinicius de Moraes, repetindo Stanislau Ponte Preta, exigia para o final: uma ambulância a porta.
Se querem fazer uma feijoada em casa, dentro de portas e dentro do país, eu tenho uma solução aproximada. Em primeiro lugar, o feijão preto, aquele pacotinho de um quilo (fazer feijoada com menos de um quilo de feijão é um desperdício - feijoada é um prato para muitas pessoas). Depois, as carnes: fumadas, secas, em enchidos. Como faço eu? Simples. Num almofariz, prepare uma massa com duas cebolas picadas, salsa, dez dentes de alho, um nadinha de coentro fresco, duas ou três malaguetas. Numa panela de pressão disponho o feijão preto, cubro de agua, junto essa massa, as carnes com osso, a costelinha fumada, a orelha. Tapo e deixo que coza por 15 a 20 minutos.
À parte, numa panela de ferro regulamentar, faço um refogado em azeite, com bastante cebola, a que junto os cubos de carne fumada e os enchidos (linguiça). Mal aloira, junto dois dentes de alho, duas folhas de louro, e o feijão meio cozido que entretanto salta da panela de pressão, devidamente acompanhado do caldo e das suas carnes. Mexo com uma colher de pau e deixo que tudo se misture. Dai a pouco, mal entra em ebulição, retiro cerca de duas conchas de feijão e desfaco-o com um garfo; devolvo à panela, tapo e bebo uma cerveja gelada. Deixo que cozinhe, embora possa rectificar com pimenta e malagueta.
Preparo o arroz: frito-o primeiro em duas colheres de sopa de azeite, junto três vezes o seu volume em agua e tempero apenas com sal. Simples. Na falta de couve mineirinha, tomo um bom molho de couve-galega e corto-o em tiras finas (dispensando os talos), lavando-o bem. Escaldo a couve em agua fervente, por dois minutos ou menos. Numa frigideira larga junto a três colheres de sopa de azeite uma cebola muito picada, cubos de bacon ou de toucinho (eu dispenso, mas a regra é a regra) e acrescento a couve, salteando-a, mexendo de forma a fritar ligeiramente mas sem perder a sua cor. Nesta altura, frita-se o torresmo, que deve ficar estaladiço e disposto em tacinhas pecaminosas ao lado da feijoada, que entretanto acabou de cozinhar.
Descasque-se uma laranja por pessoa e cortem-se às rodelas. Depois, tem a farofa. Nos nossos supermercados já existe, pronta, embalada e saborosa, importada do Brasil. Use-se com parcimónia de um dietista ou com o à-vontade de um sertanejo. A minha feijoada ficou pronta. E tem mais: independentemente da regra que também manda separar as carnes do feijão, eu gosto assim.
Ingredientes
+ Feijão preto, 1 kg
+ Carnes e enchidos ao gosto do cozinheiro (entrecosto, orelha, linguiça, bacon, toucinho, entrecosto fumado)
+ 3 cebolas
+ 12 dentes de alho
+ louro
+ 3 malaguetas
+ salsa
+ coentro fresco
+ sal, azeite
+ 300 g de arroz
+ Couve-galega (cerca de 500 g)
+ laranja (cerca de 1 kg)
+ Farofa
in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Julho de 2005
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