julho 21, 2005

A bandeira da moral

Três dias antes da eleição histórica de Lula da Silva como presidente do Brasil escrevi neste mesmo jornal um artigo cuja ideia geral era "oxalá me engane". Tamanho atrevimento provocou engulhos. Eu não era apenas um perigoso reaccionário - era, também, um homem sem fé, coisa que pouco me incomodou sempre pensei que a fé não tinha nada a ver com a política. A patrulha ideológica não pensou o mesmo; duvidar da excelência de Lula e do PT brasileiro era um pecado venial. Em Portugal, Lula encarnava toda a esperança da Esquerda, coisa que, como escrevi, era uma das tragédias com que o novo presidente teria de viver: ele teria de, no Brasil, redimir as velhas e mais ou menos novas bandeiras que a Esquerda não conseguiu reerguer depois dos anos 70.

De então para cá, as coisas aconteceram e, como eu temia, não me enganei muito desde o anúncio de casos de corrupção até ao assalto do aparelho de Estado por um partido leninista como o PT, que sempre se afirmou como detentor da bandeira da moral e da ética. Acusações e suspeitas de gravíssima corrupção, um homicídio não totalmente resolvido, desvio de fundos, malas e cuecas cheias de dinheiro transitando por Brasília, alianças contranatura com Paulo Maluf (na eleição perdida em São Paulo), com as bases que apoiaram Collor e com o pior do PMDB. E não só: funcionários do partido recrutados para a administração pública e enriquecimento dos cofres do PT, demissões forçadas de funcionários do Planalto acusados de corrupção, escândalos de nepotismo e de protecção a presidentes de instituições públicas (como o Banco Central), além do natural embevecimento com o poder, do peso do marketing e da publicidade, e da confusão entre o partido e o Estado (o Banco do Brasil chegou a patrocinar um jantar de angariação de fundos do partido), sem falar da perseguição a funcionários que também duvidavam da excelência do novo Governo ou que se limitaram a cumprir a lei contra os novos detentores do poder. Agora, isto: um velho aliado (do PT e de Collor, note-se) diz que o PT e a sua cúpula são responsáveis pelo "mensalão", uma propina vergonhosa paga a deputados que votassem conforme as indicações do Governo, a par da existência de corrupção nos Correios. Demissões várias: o próprio presidente do PT (José Genoíno) foi afastado, depois da queda do número dois do governo (José Dirceu, controlador do aparelho de Estado) e do tesoureiro do partido (Delúbio Soares), envolvido em negócios com sacos e malas de dinheiro, além de empréstimos duvidosos ao partido, contraídos junto da banca "aliada" e de empresários e grupos de currículo suspeito.Nada disso põe em causa o Brasil, cuja economia recupera de alguma maneira e cujos pagamentos ao FMI foram antecipados.

Nada disso põe em causa, sequer, a minha "brasilodependência". A Esquerda está mais chocada do que eu. Ao afirmar-se detentora da bandeira da moral e da ética, a Esquerda caiu de novo na armadilha. A "superioridade moral da Esquerda", um valor estalinista (e maoísta) caiu por terra mais uma vez. A única diferença é que isso aconteceu num dos países socialmente mais injustos do "segundo Mundo", juntamente com a queda de campanhas de marketing como o "fome zero" e outras utopias instrumentais, que visavam mudar a realidade, mesmo se a realidade não era aquela.

Esta derrota deveria servir de lição para todos, à Direita e à Esquerda, no Brasil como em Portugal. Ética e moral relevam da esfera individual. O exercício do poder tem pouco a ver com isso - mais com a seriedade do que com a utopia, que é sempre traiçoeira e autoritária. Lula, que vê a sua reeleição em perigo, já aprendeu que a ideia da "superioridade moral da Esquerda" é um engano brutal.

Jornal de Notícias, 21 de Julho 2005