julho 30, 2005

Entrevista no Mil Folhas

Francisco José Viegas foi professor universitário, é escritor e jornalista. Durante 14 anos dirigiu a revista "Ler". Actualmente tem um programa sobre livros na televisão, Livro Aberto (na RTPN e na RTP2), e um programa de radio, Escrita em Dia (na Antena 1). Continua a escrever crónicas no "Jornal de Noticias", na revista "Elle". Publica receitas que qualquer pessoa pode seguir na "Grande Reportagem" (de que foi director, no período pós Miguel Sousa Tavares) e na "Volta ao Mundo", revista para a qual também faz reportagens de viagens. Esse amor pela confecção de alimentos vai transformar-se, ainda este ano, num progra­ma de cozinha, a passar na RTP2, onde Viegas irá cozinhar em diferentes cozinhas de convidados.

Há vários anos inventou uma personagem, com a qual entrou no mundo da literatura: Jaime Ramos, um detective do Porto. "As Duas Aguas do Mar", "Um Céu Demasiado Azul", "Um Crime Capital", "Morte no Estádio" e "Um Crime na exposição" são os livros on­de ele aparece. E agora em "Longe de Manaus" (todos publicados pela Asa).

Mantém alguns blogues, uns com mais regularidade do que outros: o Aviz (pessoal), o Gávea (sobre literatura brasileira), o Livro Aberto (sobre o programa) e por fim, em teoria, mantém uma colaborarão no Fora do Mundo. Isto dos blogues a certa altura deu em "vicio". Tinha de “postar” todos os dias. Uma hora por dia era sagrada na dedicação ao blogue. Foi aliás agarrado a um computador portátil que transporta consigo numa mochila que o Mil Folhas o foi encontrar num hotel de Lisboa, onde decorreu esta entrevista.
Estava de partida mais uma vez para o Brasil. E já tinha escritos num caderninho preto, Moleskine, alguns capítulos da próxima história de Jaime Ramos.


"Lourenco Marques", o seu romance anterior, que foi um sucesso de vendas, não tinha a per­sonagem Jaime Ramos. Como é que foi regressar ao seu detective?
O "Lourenço Marques" estava para ter o Jaime Ramos, mas percebi que não podia. A ideia desse livro apareceu-me quando estive em Moçambique, pela primeira vez, em 1995. Aconteceu-me o que normalmente acontece quando vou a um sitio novo. Penso sempre: "Aqui dava para fazer uma história!" Nessa altura, escrevi os primeiros capítulos de uma história policial. Quando voltei pela segunda vez a Moçambique, meses depois, apanhei uma história com­pletamente diferente.

Qual era?
Era a história dos portugueses de Moçambique. Que me reenviava também para o tempo em que era um miúdo de liceu, quando começaram a chegar os retornados. Ti­nha família em África que regressou nessa altura e o contacto com eles permitiu ver que tinham uma cultura diferente, outros hábitos alimentares. um corpo mais disponível, mais “mostrável”.
Sempre quis escrever sobre essa África dos Portugueses. Pegar naqueles Portugueses e contar que tinham tido uma vida feliz em África. Ou seja, permitir que eles dissessem a frase, que é muito Karen Blixen: "Eu tive uma quinta em África". Durante muito tempo isso era impossível, politicamente incorrecto, essa gente esteve durante muito tempo escondida, não podia mostrar o seu grau de felicidade na memória.

Porque é que não podia ser uma história com Jai­me Ramos?
Porque era muito diferente de uma história policial. Era uma história sobre memórias, sobre medos, sobre perdição. Como costumo dizer, tinha um contrato com o Jaime Ramos há muito tempo e portanto tinha de Ihe dar trabalho. Por outro lado, queria continuar, de certa a mane ira, o trabalho de "Lourenço Marques". Ou seja, o trabalho daqueles Portugueses que não estão em Portugal, que vivem fora e que têm uma má relação com o país mesmo assim.
A certa atura isso revelou-se-me. Estava em Timor, muito longe, no velho hotel Timor, onde há uma mesa enorme que todas as sextas-feiras era ocupada com um jantar com Portugueses que estavam lá. Eram novos, bonitos e reuniam-se para falar mal de Portugal com uma grande ternura e dedicação. Quis escrever sobre este tipo de sentimento anti-português e, ao mesmo tempo, sobre a solidão de quem está fora e não quer voltar de maneira nenhuma para Portugal. Alguém cuja única identidade é o passaporte, os sítios por onde se passa, sendo português por esses sítios todos.

Acabou por encontrar uma história real. Como chegou a ela?
Através de um jornal ("Jornal de Noticias"). É a história de um homem que é assassinado e não tem em sua posse documentos, só um passaporte. Em conversas com "contactos" da Judiciaria, acabei depois por inventar esta história de um português que viveu sempre fora de Portugal, que procurou a sua feli­cidade longe, longe. Por outro lado havia a ideia, já antiga, de fazer uma coisa com Brasil dentro. Não só tenho uma relação especial com o Brasil, já ha muitos anos, como tive a sensação de querer fazer algo deste género a primeira vez que cheguei a Manaus para fazer o programa de televisão Avenida Brasil, nos 500 anos da descoberta do Brasil. Subi o Amazonas de barco e quando se sobe a primeira vez é avassalador. Quando se está no meio do rio, há vários pontos em que se olha para a margem direita, vê-se essa margem, mas já não se vê a margem esquerda: é largo, imenso.

E a cidade?
É espantosa para quem chega de barco. Manaus é uma cidade tão grande que ninguém se encontra e ninguém se perde, pois realmente não há nada para perder porque está tudo rodeado de floresta. Uma ilha rodeada de floresta e de agua é Manaus. E é uma cidade onde chegou todo o tipo de gente.

De que género?
Toda a gente. Por exemplo, a comunidade judaica portuguesa no início do século XX cm Manaus era enorme. Os Portugueses que vieram de Mazagão foram para a Amazónia, não para ai exactamente, mas um pouco mais para cima para o Amapá, mas muitos deles também chegaram depois a Manaus. Os libaneses e sírios que foram para Manaus, uma das tradições é fixada pelo MilIon Hatoum, que é, de facto, o grande escritor de Manaus; os índios de Manaus; os Portugueses e os ingleses da borracha. Aquela cidade é fabulosa! Tem o símbolo maior da loucura luso-brasileira que é o Teatro Amazonas, a Ope­ra de Manaus. A única coisa realmente brasileira além das obras de pintura do Crispim do Amaral são as madeiras e nem todas, tudo o resto veio da Europa, os cristais, os tecidos, tudo c europeu! Há toda aquela mitologia do filme com o Klaus Kinski, "Fitzcarraldo", de Werner Herzog e a mitologia de que o Caruso esteve lá. Ele nunca esteve lá! O Teatro Amazonas encerrou depois do ciclo da borracha, já não havia dinheiro, e uma das ultimas pessoas a tocar lá foi o Villa-Lobos. Nos livros falamos daquilo que gostamos.

Pode visitar-se tal como fez o Jaime Ramos no livro?
O Teatro Amazonas está aberto a visitas e tem actividades, concertos. Com a zona franca, Manaus transformou-se numa metrópole onde tudo é possível, desde a maior corrupção, a maior onda de criminalidade. Ali­ás um dos acontecimentos do Iivro — o assassínio daquelas meninas no barco — aconteceu há um ano com deputados e médicos. Ma­naus é um sitio impossível, nunca se encontra ninguém, nunca se perde ninguém. É tudo muito flutuante. O próprio bairro flutuante de Ma­naus é a metáfora da cidade. Tem aqueles sabores — o tucupi, tem aquela poeira da Amazónia, tem o cheiro do rio que as vezes não é agradável, tem os aromas do mercado, das ervas. Por um lado é muito afrodisíaco e, por outro, é muito perigoso, pois nunca se sabe se uma das ervas é maligna ou não. Quem vive em Manaus tem a noção de que só pode sair dali ou de barco ou de avião e de barco a viagem é muito longa. Aquela praça diante do Teatro Amazonas que tem buganvílias é estranhíssima. E a memória dos portugueses, Lisboa teve um rabino que era casado com uma senhora de Manaus.

Quanta ao titulo do Iivro, "Longe de Manaus". Por­quê?
Precisava de um sitio onde um português se refugiasse. Os Portugueses escondiam-se onde? Na Bahia, no Nordeste, porque têm aquela noção dos Mares do Sul. Para qualquer europeu, os mares do Sul, são azuis, claros... É mentira, não são nada disso. Os mares do Sul são horríveis, tem ventanias, são escuros. Basta ler o (Francisco) Coloane, chegar à Patagónia, ao Chile e à Argentina para perceber isso. Encontrei um português que se escondeu em Manaus, mas para fugir para lá ele tinha de ter uma razão qualquer, ou vai para lá fugido, fugido mesmo, ou chega lá através de alguém: foi aí que quis meter os libaneses de Manaus, que eram personagens fantásticos.

Dai a história do delegado Osmar Santos.
Vi uma exposição justamente em Manaus sobre a emigração de árabes, sírios e libaneses para lá e fiquei maravilhado. Além de ser gente muito bonita, manteve as suas tradições e muitos deles, que saíram de Manaus para São Paulo, tornaram-se pessoas importantíssimas. E a memória deles era encantadora. Depois conheci o Milton Hatoum, um dos maiores escritores brasileiros, autor dos livros "Dois Irmãos" e "Relates de Um Certo Oriente" — numa conversa contou-me uma história que era de certo modo a história da família dele, da ida do avô e do pai para Manaus com uma passagem pelo Acre. O Acre antes de ser um estado brasileiro era o território do Acre, foi comprado ao Peru, basicamente. O Acre é onde se cometeram imensos crimes que só dificilmente foram investigados. Aliás, o (jornalista) Zuenir Ventura tem uma história sobre o (seringueiro) Chico Mendes, mas o Acre ainda é mais lon­ge do que se possa imaginar. Aqueles rios estranhos, a floresta, a paisagem aterradora. Também foi muito colonizado por libaneses que iam pelos rios até chegar lá. Este mundo também me interessava. Não como história, mas como paisagem. Tenho a tentação de primeiro procurar a paisagem, o cenário, e só depois escolher a história. Foi sempre assim. E vai voltar a ser assim de novo.

Mas insisto, “Longe de Manaus” porquê?
Porque ha essa sensação de Manaus estar longe de tudo. As personagens estão longe do resto do mundo. Tudo o resto está longe de Manaus. Quando Manaus começa a perder a importância económica no inicio do século XX, com o fim do exclusivo da borracha, ficou perdido e só recuperou com a zona franca que é relativamente nova. A vida das pessoas do Porto, onde se passa parte da história do Iivro, a vida das pessoas de Luanda, tudo está longe de Manaus. Em conver­sa com o (jornalista) Ferreira Fernandes disse-lhe um dia que estava a escrever uma história sobre Manaus. Ele contou-me que a primeira vez que viu Manaus, ele que é de Luanda, pensou: "Isto é Luanda, estou em Luanda!"

O Iivro começa aliás com uma cena de striptease em Luanda. Durante a leitura do Iivro pensamos que a vamos seguir mas...
Aquilo é um plano.

Quem está a ler não sabe.
Depois há um outro plano que se passa numa outra zona qualquer. E a seguir temos planos que também n3o fazem parte da história: os planos da Daniela. São planos, imagens, pedaços de filme.

Quando se acaba de ler o Iivro, pode voltar-se ao principio por se pensar que houve alguma coisa que nos escapou. Quem era aquela mulher da cena do striptease? Vê-se então que era Mara. Mas então , porque é que não sabemos mais sobre isto? Pode ficar a interrogação.
Exacto. Há sempre qual­quer coisa na memória das pessoas que é muito traiçoeira, que se esquece. Isso é um teste também. Esqueces, mas, se tens boa memória, vais lá. É como ver a própria história da Mara. Quando Jaime Ramos, em Manaus, vê aquela fotografia de uma mulher bonita, vestida daquela maneira, com aquele mar azul daquela ilha de Luanda — acontece-me muito vezes essa tentação quando vejo fotografias de há muitos anos, de gente que não conheço, de fazer essa história daquela imagem. Escrevo a partir de fotografias, para descrever o passado procuro uma fonte.

Onde?
Em postais ilustrados, em foto-biografias, em livros ilustrados, em colecções de fotografias de pessoas amigas. A certa altura do livro aparece um retornado a contar na primeira pessoa como é que era a vida no Lobito e em Benguela. Aquelas fotos existem. A personagem diz: "Há tantas pessoas a entrar na agua, só há três pretos e eu conheço-os a todos." É uma foto publicada num livro sobre Angola. Procuro esses materiais dispersos. Ou vou lá, aos sítios, e fotografo.

Uma marca de originalidade deste “Longe de Manaus" é a opção por utilizar a grafia brasileira nos capítulos que se passam no Brasil. Saiu-Ihe assim ou foi premeditado?
Aconteceu por dois motivos. O primeiro foi por uma irritação muito grande contra os Portugueses que acham que são proprietários da língua. Os brasileiros são 180 milhões, fazem o que quiserem da língua portuguesa e têm, feito, felizmente! Queria mostrar que era possível num livro português coexistirem as duas grafias. For outro lado, quando começo a pegar na Daniela fiquei de tal modo apaixonado por ela e pela Helena, que para dar exactamente a imagem que eu tinha da Daniela não a podia pôr a falar português de Portugal. Ela tinha de falar uma outra língua. As próprias enumerações que estão na cabeça dela quando começa a inventariar o passado, tudo aquilo é realmente brasileiro e ela não podia dizer aquilo em português de Portugal. Percebo que alguns leitores ao pegarem no livro sintam estranheza quando a certa altura começam a ver "teto" sem "c"; trema em "sequëncia ", e ainda bem que as pessoas tem essa sensação, porque é uma língua diferente. É impossível falar de comida, de amor, do corpo, das relações afectivas, amorosas em português de Portugal.

Pediu a alguém para corrigir?
Sim, uma pessoa que conheci entretanto, a Patrícia, que me ajudou, foi corrigindo, explicando "isto nós não dizemos assim, dizemos de outra maneira". Por exemplo, a expressão "ir ao cinema" diz-se, mas é mais comum dizer-se "ir no cinema". "Ver um filme" diz-se, mas o mais normal é "assistir a um filme”. Depois há pormenores, mas o grosso eu próprio escrevi. Consigo escrever em português do Brasil sem grandes erros.

Ao mesmo tempo isto e um policial diferente dos outros: tem muitas divagações.
Sempre vivi com esse trauma.

Os leitores habituais do detective Jaime Ramos vão interrogar-se sobre o que está aqui a fazer?
Não, notam que ele envelheceu. Acho que ele se adaptou à idade. É uma personagem com quem eu fiz um contrato no "Morte no Estádio".

Como é isto de ter um personagem que se acompanha, como é que se constrói?
Precisamos de um alter-ego. Para viver uma série de sensações, precisamos de uma personagem. Não é só o Calvin que tem o Hobbes. Na nossa vida também temos vários Hobbes. Não podemos deixar morrer essas pessoas, sob o risco de ficarmos esquizofrénicos. O melhor é encontrar uma personagem para viver isso. Eu sei onde é que ele mora no Porto, na Rua Barão Nova Sintra, sei qual é o café onde ele vai, e isso mantém-se assim. A única pessoa que se esquece da vida do Jaime Ramos é o próprio Jaime Ramos, que nem sabe de que é que a Rosa é professora.
Se por um lado Jaime Ramos tem aquele lado de alter-ego que vive aquelas histórias, por outro é a maneira como eu imagino uma certa pessoa e a construi ao longo de alguns anos. Neste livro, Jaime Ramos encontra uma parte de si. Quando ele se depara com Álvaro Severiano Furtado e diz "este homem não tem biografia, e eu também gostava de ser assim". Descobre esses Portugueses e descobre o seu próprio passado. Porque há também o encontro com o advogado que era seu su­perior hierárquico na guerra na Guiné.

Mas estava a falar de um trauma...
Estava a dizer que sempre tive o trauma das 20 regras para escrever um romance policial do S. S. Van Dine, o criador do detective Philo Vance. No fundo, são as regras do romance policial clássico Ele diz: o narrador do livro sabe tanto como o leitor, não se pode esconder nenhum dado ao leitor, não se pode guardar nada na manga. O investigador não pode ter paixões, nem estados de alma. O investigador é duro ou pelo menos racional, faz a sua própria investigação não está cá com poesias. O crime é um facto. Não há mistérios, não há intervenção de coisas metafísicas. São 20 regras muito precisas. Há uma alteração nesse cânone do policial quando Raymond Chandler escreve o ensaio "The Simple Art of Murder" e muda completamente o sentido da literatura policial. Ou seja, dizendo, a morte é morte, mas a morte tem razões sociais, emocionais, matar não é um divertimento superior. Nós temos um cânone que é o dos policiais clássicos, que são deliciosos, e que têm o crime como um divertimento superior, isto é vamos chegar a, isto por deduções e deduções. E a partir do Chandler e da geração do romance negro americano isso muda muito. Eu sempre vivi com esse trauma do S.S. Van Dine e com aquilo que as pessoas diziam sobre o próprio policial.

Tais como?
As pessoas diziam coisas como: isto não é bem um policial, o policial tem de ser seco e tu não o fazes. Eu também queria assumir claramente, não é que isto não seja um policial, é que se pode fazer um policial de outra maneira, com estados de alma.

Por isso este livro tem no, inicio a frase: “Um romance policial, como se sabe, tem as suas regras. Este não tem."
A mim tanto me fez ser policial como não, é-me completamente indiferente. A ideia de fechar um género entre quatro paredes e muito reaccionária, não faz sentido. O que faz sentido e pegar nas regras e fazer com elas aquilo que nós quisermos. As regras mantêm-se no fundo, estão lá. Ha um crime, há uma investigação, ha um cadáver.

No seu caso há vários.
Ha vários para tornar o cadáver mais barato por livro. (risos). Mas depois como se escreve ou se chega ao processo final, isso é completamente diferente, depende da pessoa e daquilo que se quiser fazer respirar. Depois tem a ver com essa banalização e com esse lugar-comum de que, no policial, as personagens, o meio e o cenário só podem ser negros. O detective tem de ser um pintas, ter aquela linguagem de Lisboa ou do Porto, tem de viver sozinho, ser alcoólico, beber imenso “whisky” e fumar. Isso é uma coisa um bocado desgraçada, no fundo estamos todos a repetir o Dashiell Hammett. Éramos todos Sam Spade ou Mickey Spillane. Isso não funciona. A vida não é assim. Nem os polícias são assim.

Porque e que escolheu o Porto para a cidade do Jaime Ramos, um detective burguês do Porto?
Quando escrevi "A morte no Estádio " que é uma história sobre o Porto não ia pôr um detective de Lisboa. Tirando o França, o detective do Miguel Miranda, que é também do Porto, mas é o maior detective do mundo e é privado, são todos de Lisboa. Este é um polícia, é um burguês, é um tipo que tem o seu café, vive num apartamento que é um quarto-sala, namora uma professora de liceu...

Tem um obsessão pela sua cozinha.
Há coisas que lhe empresto (risos) que ele não tinha a princípio.

Neste livro só há uma receita.
Neste livro só faz arroz de bacalhau. Mas o próximo livro começa com comida. E há a ideia de publicar para o ano as receitas dos livros de Jaime Ramos. O facto de ele gostar de cerveja, de gostar de ir à pesca, não é o detective pintas. Esforço-me por não repetir clichés do tipo que vai aos bares e se deita às quatro da manhã. Ele gosta de se deitar cedo.

Parte das diligências de Jaime Ramos passam-se ainda em Vila Flor. Outra parte do livro decorre ainda em Cabo Verde, uma história paralela. Há alguma razão para isso?
Para preparar o próximo livro precisava do Corsário (personagem de "Longe de Manaus"). Numa história temos as personagens principais de quem na verdade a história nasce e temos personagens que aparecem à nossa frente, tal como na nossa vida. Temos pessoas com quem vivemos, por quem nos apaixonamos e que são nossos amigos para sempre. E temos outras que passam brevemente pela nossa vida, e as personagens são assim. De repente eu precisava de outra coisa. As pessoas perguntam-me a Daniela aparece porquê? Porque me apaixonei por ela.

Ela é importante para percebermos quem é o homem que vai ao banco.
Por isso mesmo também não teríamos Jaime Ramos em Vila Flor se a Rosa não fosse de Vila Flor. Portanto, as coisas não estão desligadas mas reconheço que há umas que aparecem, que flutuam, há a Daniela, a Helena, o Corsário, a Fátima, Amarante. São coisas. Na nossa vida nem tudo é coerente. Nem tudo é um exercício de geometria.

A seguir vamos para Cabo Verde e depois? Vamos para S. Tomé? Ou será que S. Tomé na literatura portuguesa já está arrumado?
Não, não (risos)

Gostava de perceber se há aqui uma estratégia.
Não tem estratégia. Tem a ver com apetites, porque há dois anos fui a Cabo Verde pela primeira vez. E aconteceu-me a mesma coisa. “Isto dava uma história”, aqui, como cenário. Tenho que me fustigar a mim próprio: “Cala-te, não tens aqui uma história.” Mas obviamente que tenho, tenho ali aquela ilha e depois a ilha em frente que é um colosso. Vou fazer um história em Santo Antão. Os cenários, Mindelo, Santo Antão, e mesmo as cidades, como São Paulo, por exemplo, comovem-me muito.

Não estará a entrar num circulo de onde não poderá sair?
Não, não vou. Mas este é o circulo onde vivo e onde vivem aquelas personagens. Se eu vivo assim porque é que as personagens não hão-de viver assim? E perfeitamente normal, O Jaime Ramos vai ao Brasil. E a primeira vez que ele vai ao Brasil e diz que pensa que vai repetir a primeira viagem de um tio. Ele junta tudo como eu junto tudo. Ele junta a viagem do tio com a sua viagem de natureza profissional. E há cenas que não entraram como nos DVD, onde depois existem as partes dos extras. Sabe em que condições um policia viaja? Quando chega à fronteira tem de tirar a pistola, mostrar, fazer declarações. Há uma cena que escrevi com a partida do Jaime Ramos do Porto, escrevê-la para mini foi hilariante, mas entra no próximo.
Depois tento ao máximo evitar repetir os clichés do meu meio. Já aqui tive uma tentação, mas peço a mim próprio para não meter professores universitários nem jornalistas nos livros.

Mas podemos transpor isso para "só meto ex-colónias”.
Porque me tocou muito a quantidade de pessoas que conhecemos na rua e que têm relação com Angola, Moçambique, não se pode ignorar isso. O meu contacto com África foi todo depois da descolonização. Eu só visitei África quando (Angola, Moçambique...) já eram países. O primeiro país que visitei foi a Guiné e quan­do cheguei lá senti: "Tanto me faz que tenha sido portuguesa como não." A única coisa que para mim foi portuguesa é que acabei por ter de ir ao cemitério dos soldados Portugueses em Bissau. Nessa altura, o (jornalista) César Camacho estava a fazer uma viagem com o (oficial do Exercito] Matos Gomes e falou-me de uma personagem fantástica, é a mulher do "Loureço Mar­ques" que fugiu para a ilha e desapareceu. Há pessoas com vidas extraordinárias ligadas a África. Provavelmente eu escreveria da mesma maneira se tivesse o mesmo fascínio pela Europa de leste, mas tenho este fascínio por África. Não sou um africanista, nem sequer sou um especialista em África, mas é um universo que me seduz muito – tal como o da América Latina. Tive uma proposta divertida de um editor brasileiro para escrever um livro que é um “Crime em Frankfurt” e obviamente vai matar o (escritor) Paulo Coelho. Aí provavelmente escreverei só sobre Frankfurt e sobre a Europa. Mas não! Vou meter um português e um brasileiro e vou destruir isso tudo! (gargalhadas) Até há cidades europeias que adoro, mas não tenho o mesmo apetite.

Entrevista de Isabel Coutinho
in Mil Folhas (suplemento do Jornal “Público”), 30 Julho 2005