setembro 02, 2004

A santa aliança

É inegável que a questão do aborto se transformou em matéria de confronto político. Fora da Pátria, vejo pela televisão o dr. Louçã, desgrenhado, em directo, acusando todos os que lhe apetece. Bem vistas as coisas, não se lhe pode criticar nem a pose nem o método. São muito dele ambas as coisas. O dr. Portas, o do Governo, responde-lhe como um espelho; tanto a pose como o método são muito dele, igualmente. Diante do sorriso cheio de acidez moralista do líder do Bloco, o líder do PP expõe o seu melhor tom escandalizado diante dos desvarios da moral pública. Ambos são moralistas, cada um à sua maneira; um, no tom e na arrecadação de certezas; outro, na raiz quadrada dos seus discursos. Graças a eles e aos seus vários acólitos, a discussão sobre o aborto transformou-se numa guerrilha moral e política sem sentido, impedindo que possa ser encontrada uma solução moderada e aceitável que não ponha a sociedade em balbúrdia e que impeça a histeria de aumentar descontroladamente.

A ideia de transformar o barco holandês em símbolo da liberdade é um manifesto exagero que desvaloriza e inviabiliza qualquer entendimento sobre a matéria (o aborto); a decisão de avocar meios militares para defender a pureza virginal das nossas águas da Figueira da Foz é tão estapafúrdia que nem merece riso, mas sim condenação. Com o tempo, e conforme o previsto, esta radicalização do universo político, emprestando-lhe tons militares e linguagem de espalhafato, é um retrato perfeito do país. Depois do "bloco central", segue-se o "esvaziamento do centro", confirmando que estamos destinados a viver entre o oito e o oitenta: a Esquerda prisioneira das "propostas fracturantes" e a Direita prisioneira do papismo moral. Nenhum lugar para a tolerância e para o entendimento. Está tudo como eles queriam.

A breve prazo, isto terá consequências, sobretudo para a Direita, evidentemente: o seu discurso sobre a moralidade, as virtudes morais, a rigidez dos princípios e as doutrinas inquestionáveis, não tem ponta por onde se lhe pegue. Mais tarde ou mais cedo, abrirá brechas onde menos se espera. O discurso da Direita, nesta matéria da moral, ainda "não deu a volta": à mínima escorregadela, invoca os deuses e os princípios; acossada, vai buscar métodos de antigamente, levanta o dedo indicador, pertinaz e pernóstico. É uma desgraça. E uma pena. E uma falta de inteligência.

O bispo D. Januário Torgal Ferreira, de quem a Esquerda gosta de aproveitar as frases conforme as conveniências, deu o tom: "Ninguém pode impedir a liberdade de expressão". Afrontar o folclore da Esquerda televisiva com meios militares, revistas a embarcações, solenidades escusadas, direito marítimo e internacional, fotografias de fetos e o ar de quem acaba de descobrir que o Mundo tem destas coisas, é a resposta mais risível de todas. Aquela lengalenga sobre "o direito à barriga" e o "não te prives" é deplorável, sim, e folclórica; mas esta exibição militar de segunda ordem é o Verde Gaio em defesa da moral e do Tratado de Zamora.

O dr. Louçã diz que o Ministério da Defesa e do Mar não é propriamente o da Saúde. Tem razão - mas o barco holandês também não é uma dependência da rede pública de hospitais. O seu espelho no Governo, o dr. Portas, responde-lhe com fragatas e exercícios militares. Estão bem um para o outro. Uma santa aliança.

Jornal de Notícias - 2 de Setembro de 2004