Apologia de Sócrates
Ao contrário do que supõem os excelentes mestres da Esquerda, os cidadãos não estão interessados em grandes esforços. Um certo esgotamento em relação à política tomou conta do eleitorado - não estão disponíveis para grandes "fracturas". Eu dou-lhes razão. A maior parte dos geniais pensadores da Esquerda que trabalha no Estado ou no sector público vem da Assembleia da República ou da Universidade; pode pensar à vontade, brilhar na Imprensa e falar de coisas que não têm sentido para a maioria dos cidadãos - por isso estão dispostos a sacrificar uma parte da sua liberdade e do seu prestígio (porque lhes foram ambos garantidos) em nome de valores ideológicos. A maioria dos cidadãos não gosta de abdicar nem da sua liberdade nem da possibilidade de mudar de opinião; conhece o valor de ambas, porque nunca lhe foram garantidas. Sabe que a "depressão nacional" não é um conceito discutível no divã - existe porque há depressão económica, porque falta dinheiro, porque as coisas estão difíceis.
A maioria dos cidadãos anda de autocarro e dá valor a coisas insignificantes. Preza os intelectuais mas não gosta de sugestões sobre moral e compromissos. Tem a noção do ridículo, mas reconhece a hipocrisia à distância, a impostura. A maioria dos cidadãos até pode achar que o dr. Louçã tem razão em algumas coisas - mas teme-lhe o dedo levantado, a ameaça de Torquemada, a insensatez de quem acha que tem mesmo razão em tudo o que fala. A maioria dos cidadãos conhece os perigos reais: as filas de espera nos centros de Saúde, os preços dos manuais escolares, os orçamentos familiares reduzidos, as prestações mensais. E, farta de conhecer esses perigos, comete os disparates que se conhecem: endividamento sucessivo, gastos desnecessários. Porque a vida tem um preço elevado em relação ao tempo de que dispõem para a gozar. Os mestres dizem que o preço dos romances de José Saramago não é tão elevado como o dos bilhetes de futebol ou dos telemóveis - mas a maioria dos cidadãos acha que tem direito à sua pequena estupidez, gastando parte do seu orçamento em coisas inúteis - porque a vida também é inútil, muitas vezes, e não querem viver amargurados todos os dias do ano. É essa a razão porque aceita o combate ao défice: que o combata o Governo, que pode, mas que não lhe estendam a factura diariamente, lembrando-lhes sacrifícios. A maioria dos cidadãos está habituada a eles, farta deles, farta das operações bancárias, farta do crédito malparado.
A maioria dos cidadãos é ligeiramente amoral, acha graça aos cafajestes, mas não os quer no Governo. Acha que eles devem gozar, sim, mas "cá fora", onde são inofensivos e onde se divertem às suas custas. A menos que haja compensações. A maioria dos cidadãos não gostaria de estar no "Big brother", e não acha que seja prestigiante estar lá - mas aprecia quando um bando de palermas se dispõe a fazer figuras ridículas. É por isso que a maioria dos cidadãos despreza o seu "jet set" lusitano, cheio de imbecis e de gente vulgar, incapaz de dar um exemplo; não lhe tem respeito, não o acha decente. Faz bem. A maioria dos cidadãos diverte-se com as pilantrices de Santana Lopes (e despreza os moralistas), mas preferia em São Bento alguém que lhe dê garantia e que não passe a vida em rumbas passionais. A maioria dos cidadãos percebe de política.
Por isso, José Sócrates percebeu que não pode partir em campanha pelo país a fim de evangelizar e educar o eleitorado, como pretende a Esquerda - ele dirá, simplesmente, que vai ser primeiro-ministro. A sua frase será "Adeus, Santana Lopes". Vai ser assim durante dois anos, em fogo lento, com ligeiras ebulições, até que Santana Lopes, deprimido ou aliviado, regresse ao seu mundo.
Jornal de Notícias - 30 de Setembro de 2004
A maioria dos cidadãos anda de autocarro e dá valor a coisas insignificantes. Preza os intelectuais mas não gosta de sugestões sobre moral e compromissos. Tem a noção do ridículo, mas reconhece a hipocrisia à distância, a impostura. A maioria dos cidadãos até pode achar que o dr. Louçã tem razão em algumas coisas - mas teme-lhe o dedo levantado, a ameaça de Torquemada, a insensatez de quem acha que tem mesmo razão em tudo o que fala. A maioria dos cidadãos conhece os perigos reais: as filas de espera nos centros de Saúde, os preços dos manuais escolares, os orçamentos familiares reduzidos, as prestações mensais. E, farta de conhecer esses perigos, comete os disparates que se conhecem: endividamento sucessivo, gastos desnecessários. Porque a vida tem um preço elevado em relação ao tempo de que dispõem para a gozar. Os mestres dizem que o preço dos romances de José Saramago não é tão elevado como o dos bilhetes de futebol ou dos telemóveis - mas a maioria dos cidadãos acha que tem direito à sua pequena estupidez, gastando parte do seu orçamento em coisas inúteis - porque a vida também é inútil, muitas vezes, e não querem viver amargurados todos os dias do ano. É essa a razão porque aceita o combate ao défice: que o combata o Governo, que pode, mas que não lhe estendam a factura diariamente, lembrando-lhes sacrifícios. A maioria dos cidadãos está habituada a eles, farta deles, farta das operações bancárias, farta do crédito malparado.
A maioria dos cidadãos é ligeiramente amoral, acha graça aos cafajestes, mas não os quer no Governo. Acha que eles devem gozar, sim, mas "cá fora", onde são inofensivos e onde se divertem às suas custas. A menos que haja compensações. A maioria dos cidadãos não gostaria de estar no "Big brother", e não acha que seja prestigiante estar lá - mas aprecia quando um bando de palermas se dispõe a fazer figuras ridículas. É por isso que a maioria dos cidadãos despreza o seu "jet set" lusitano, cheio de imbecis e de gente vulgar, incapaz de dar um exemplo; não lhe tem respeito, não o acha decente. Faz bem. A maioria dos cidadãos diverte-se com as pilantrices de Santana Lopes (e despreza os moralistas), mas preferia em São Bento alguém que lhe dê garantia e que não passe a vida em rumbas passionais. A maioria dos cidadãos percebe de política.
Por isso, José Sócrates percebeu que não pode partir em campanha pelo país a fim de evangelizar e educar o eleitorado, como pretende a Esquerda - ele dirá, simplesmente, que vai ser primeiro-ministro. A sua frase será "Adeus, Santana Lopes". Vai ser assim durante dois anos, em fogo lento, com ligeiras ebulições, até que Santana Lopes, deprimido ou aliviado, regresse ao seu mundo.
Jornal de Notícias - 30 de Setembro de 2004
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