setembro 09, 2004

As ilusões do Beslan

Um dia destes, num telejornal, um actor de Tomar explicava o essencial sobre a lenda e o pouco que se conhece acerca de Viriato, o chefe dos Lusitanos - a propósito da encenação da sua história num espectáculo montado diante do belo cenário de Almourol. Heroísmo, honra, casamento, intriga, nacionalismo. E a perfídia do império romano, naturalmente, que liquidou Viriato à traição - e ocupou a maior parte da Península. Trezentos anos depois, o império romano cairia. Não por causa de Viriato, com certeza, mas porque a vida dos impérios está escrita com esse desfecho à espreita; nenhum sobreviveu até hoje. "O império americano também vai cair", acrescentava o actor, em tom de "moral da história" e avisando-nos a todos, incautos que somos.

Esta certeza absoluta é impossível de contrariar e não custa a admitir a excelência do paralelismo. A queda do império romano, sabemos hoje, não foi a ruína da Humanidade senão durante uns séculos; a questão está em saber que ordem substituirá a convulsão dos nossos tempos de crise. O cenário não é deslumbrante.

Daqui a dois dias, assinala-se o 11 de Setembro quando o Mundo ainda tem o pesadelo de Beslan para recordar. O terror invadiu a nossa época, mas nem isso é um lamento - não se trata de uma invenção moderna. A história da Europa está cheia de revelações nessa matéria, e de ensinamentos. A banalização do mal também não é uma novidade - há 50 anos, o Mundo reconhecia, estupefacto e traído, os limites do mal executado friamente em Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen; 20 anos depois, por muito que custasse à tendência dominante do pensamento europeu, a mesma parte do Mundo assistia, com a amargura de quem vê ruir as utopias mais modernas, a revelações brutais sobre o Gulag soviético. Os poetas da época assinalaram o nosso silêncio; como seria possível a poesia depois de Auschwitz? Brodsky, Akhmatova, Mandelstam e outros perguntaram-nos como seria possível a vida depois do Gulag. As interrogações desse tipo não acabam, porque as utopias fabricaram sempre os seus campos de morte e nem sempre puderam escondê-los por muito tempo.

O massacre de crianças, por muito que nos custe a admitir, também não é novidade. Temos uma longa tradição de horror pela frente e a imagem que o espelho devolve, quando o Ocidente e o Oriente se olham nele, nem sempre é decente. Mas pressinto que a sensação de estarmos diante do mal absoluto começa a desaparecer, face à repetição de massacres que já não chocam; são apenas factos repetidos no interior de uma tradição de barbárie. O que sabemos de Beslan não esconde o que conhecemos de Grozny, de que pouco resta, e onde as tropas russas muitas vezes ignoravam quem estavam a combater.

Tudo bem que o império americano termine, nem que seja para não desiludir o actor que em Almourol interpreta Viriato, o rebelde lusitano que recusava a lei romana e não se deixava governar por ela. O problema está em saber que mundo lhe sucede e em determinar o que recusamos dessa ordem imperial. Eu temo bastante que já tivéssemos desenhado o seu sucessor. Mas se Bassaiev e as suas viúvas negras vierem a substituir os governos fantoches de Putin na Chechénia, então tenho as minhas dúvidas.

P.S.: Há qualquer coisa de intrigante na forma como a Esquerda se tem entretido a eleger o aborto como a sua bandeira. É certo que existem outras bandeiras, outras causas, mas a euforia dos intervenientes deixa de fora poucas hipóteses (tirando a de Manuel Alegre, evidentemente, que parece consistir em dizer "eu sou de Esquerda" até à exaustão).

Jornal de Notícias - 9 de Setembro de 2004