fevereiro 03, 2005

A vida privada

Felizmente, os portugueses são gente de moral regular - ou seja, não se interessam pelo assunto. Admitem que a moral (seus vícios e virtudes) é matéria do foro privado e discutem-na apenas em foro privado, no recato dos lares e nas conversas de ocasião. Essa enorme vantagem não se pode perder. Discutir em público aquilo que diz respeito à intimidade de cada um é meio caminho para perder a razão.

A vida privada dos políticos não tem sido muito discutida, e isso é outra vantagem. De cada vez que alguém pretende ser juiz nessa matéria, tem levado resposta, como aconteceu com Sá Carneiro, que foi alvo de uma campanha de pequenas maldades e rumores moralistas não só obteve uma maioria absoluta como a sua privada passou, na opinião pública, a ser um gesto nobre de um homem livre que não escondeu os seus afectos.

Os moralistas têm vida curta entre nós; não só são gente de mau aspecto como se trata de pessoas cheias de inveja. Os portugueses são sarcásticos, quando se trata de moral - de Gil Vicente a Eça, há uma larga tradição de textos sobre o assunto, mostrando que a moral é matéria para consumo estritamente privado. Na verdade, padres, juízes, beatas envilecidas, fuinhas de toda a espécie, são pouco populares entre nós. É uma vantagem enorme que temos de agradecer ao destino. As pessoas sabem que há uma vida privada e que há uma vida pública; e sabem que, desde que a vida privada não assalte a vida pública, podem dormir descansadas. Os portugueses não apenas sabem isso, como também, porque são manhosos, percebem que a tentativa de moralizar não lhes vai ser útil nem agradável. Os portugueses gostam de desafiar a moral. E apreciam os gestos de gente livre e que não admite interferências do juízo moral dominante.

Francisco Louçã sabe que cometeu um deslize imperdoável por ter sugerido a suposta homossexualidade de Paulo Portas - e confessou que o cometeu, não só por ter sugerido isso como, também, por ter sido inacreditavelmente piroso na sua declaração. A verdade é que ninguém tem nada com isso. Pedro Santana Lopes talvez venha a aprender que cometeu um deslize imperdoável por ter sugerido uma suposta homossexualidade de José Sócrates. A verdade é que ninguém tem nada a ver com o assunto. As pessoas sabem. Os eleitores sabem. Têm um registo mental de várias histórias e de vários casos - de treinadores de futebol a políticos e outras figuras públicas. E raramente condenaram essas opções estritamente privadas, desde que elas não interferissem com a esfera pública - ou seja, com o exercício das suas funções ou com o cumprimento da lei geral. Pisar essa linha de fronteira, admitir que os comportamentos privados são escrutináveis publicamente e que há uma ideia de rectidão em matéria moral ou sexual, seria uma catástrofe para a vida pública portuguesa.

O que os portugueses não gostam é que, em matéria de costumes, se apregoe uma coisa e se faça outra (como acontecia nos textos de Gil Vicente). As insinuações morais são sempre ridículas, cretinas e impopulares.

Santana Lopes defende-se e diz que a sua vida é pública e conhecida. É verdade. Infelizmente para ele. Durante anos mostrou-a nas páginas das revistas, num rodopio quase infernal e esquizofrénico. Mas há figuras públicas que, com toda a legitimidade e com todo o direito, se recusam a abrir as portas de suas casas ao escrutínio e à vigilância da moral. Têm todo o direito. A vida privada não nos interessa realmente. Gostamos de imaginá-la, porque somos perversos, maldosos e humanos. Até admito que gostamos de conhecê-la. Mas achamos que, não ultrapassando a lei geral, não deve prejudicar a vida pública de ninguém.

E eis como Santana Lopes entregou mais uma parte da vitória ao PS.

Jornal de Notícias, 3 de Fevereiro de 2005