fevereiro 10, 2005

Resignação

Está quase tudo dito sobre as eleições. Elas vêm provar que a vida política, tal como a vida em geral, é feita de ciclos históricos. Muitas vezes, de paranóias colectivas, de ilusões gerais. De outras, como acontece na história recente portuguesa, de desilusões gerais. Santana Lopes é a última grande descoberta em matéria de desilusões gerais.

O "pântano" de Guterres prolonga-se como uma maldição e a essa ameaça tem o peso de uma profecia. Há um óbvio exagero nisso tudo - Portugal não é um país brilhante, mas também não é, propriamente, uma nódoa na nossa existência. Relativizar e comparar são, muitas vezes, excelentes tábuas de salvação para o nosso ânimo - e a verdade é que não existimos como uma ilha de deprimidos no meio de gente cheia de euforia e feliz por participar no espectáculo do crescimento; a verdade é que o Mundo não anda bem. As elites portuguesas gostam de amplificar o ruído das nossas misérias como uma desculpa para a sua inactividade e para a sua própria miséria intelectual. O recurso ao discurso da "choldra" e do "pântano", tratando os outros como "essa gente", tem uma grande popularidade desde o século XIX português. "Essa gente" era uma expressão que o dr. Salazar usaria sem grande esforço. Não duvido que a usasse - "essa gente", que ocupava os parlamentos e negociava governos de seis meses, administrações municipais e direcções-gerais, nunca desapareceu da face do país.

Guterres descobriu o pântano tarde de mais, quando tinha já sido absorvido e fazia parte dele. Pessoalmente, estou convencido de que os anos de Guterres foram, em boa parte, anos perdidos. Houve um sinal político dessa perdição um célebre comício em Esposende, no final do Verão, onde se esperava que o então primeiro-ministro assumisse o seu governo: o pântano estava ali mesmo (nas nomeações partidárias, na crise do queijo Limiano, na Fundação para a Segurança Rodoviária - lembram-se?). O pântano era mais visível, estava ali. Nessa altura, Guterres preferiu contemporizar. Não se pode contemporizar com o pântano. Infelizmente, a nossa memória tem espaços vazios. Isso nota-se bastante em campanha eleitoral.

Guterres desapareceu de cena e Durão Barroso seguiu-lhe os passos. Para o seu currículo, Bruxelas é uma glória; para os que lhe tinham confiado o seu voto, foi uma deserção, uma fuga e uma derrota. Pior uma deserção seguida da entrega do poder ao inimigo interno, Santana Lopes - a decisão mais fácil, aquela que lhe facilitaria a retirada rápida. Não bastou a Barroso fazer isso. Ele acrescentou-lhe o impensável: entregou a sua própria gente ao poder de um homem que não tinha apetência para um cargo que exigia sacrifícios pessoais, empenhamento e uma biografia. Santana Lopes revelou continuar a ser aquilo que sempre foi: um hábil manobrador no fio da navalha, fascinado pelo poder mais do que pelo exercício do poder (o que é mau, porque o exercício do poder é uma actividade nobre e prestigiante), mobilizador de afectos imediatos, mas incapaz de pensar mais longe.

Em determinadas circunstâncias históricas, não há nada mais prático do que a teoria. Não se vislumbra nenhuma em Santana Lopes. Apenas imediatismos e habilidades. O seu staff vai desenterrar artigos de jornal para descortinar uma incoerência de Sócrates ou um desvario de Sampaio. O problema é que o eleitorado, que não é parvo, até essas incoerências prefere.

Não. Ele não tem jeito e não tem emenda. E, infelizmente, só muito depois de Fevereiro a Direita poderá reorganizar-se e pagar pelas asneiras de dois dos seus líderes, Santana e Barroso.

Até lá, teremos de confiar em que José Sócrates tenha as condições necessárias para exercer o cargo com a dignidade que todos nós merecemos. Isto anda uma miséria. Resignemo-nos.

Jornal de Notícias, 10 de Fevereiro de 2005