O demónio da pátria
Quanto mais pobre é um país, mais nacionalistas se reivindicam os seus cidadãos e mais patrióticos são os discursos das suas instituições. O nacionalismo, de resto, é um alimento para pobres de espírito - cujo consumo é normalmente incentivado pela lengalenga sobre "as nossas coisas", a Super Bock, o bacalhau, a sardinhada, o SG Gigante e o vermelho e verde da bandeira, a trapalhada de oito séculos de história e as histórias de heroísmo mítico de alguns personagens, de Martim Moniz a Mouzinho. Acho o nacionalismo, nos dias de hoje, uma coisa alarmante e fora de qualquer contexto.
Muitos sociólogos explicaram recentemente, com o contributo da "psicologia de massas" e de alguma intuição sem muita transcendência, que as bandeiras portuguesas do Euro 2004 podiam ser um fenómeno negativo - ou positivo, conforme levassem os portugueses a ultrapassar-se e à mediania em que andavam. Essas explicações não me convenceram nem me comoveram.
A medalha de prata de Francis Obikwelu na corrida dos 100 metros surpreendeu muita gente; no fundo, Obikwelu nasceu em África, fala um Português deficiente e vive a maior parte da sua vida em Espanha, onde treina ferozmente. Em Portugal, segundo li na Imprensa (sobretudo na espanhola, que não deixa de notar os pormenores que lhe interessam), vivia com mais dois amigos num quartinho de 15 metros quadrados, em Belém, até que uma família portuguesa lhe prestou mais atenção, o tratou de mazelas, o cuidou durante as gripes e passou a ser tratada como família. Uma família é isso mesmo. Obikwelu trabalhava nas obras. No jornal madrileno "ABC", o seu agente conta que o viu correr pela primeira vez a conselho de Carla Sacramento e, sem aquecimento, Obikwelu fez 10,25 em 100 metros na pista de cinza do Restelo. Um colosso. Tentou fazer dele cidadão espanhol, mas sem sucesso por causa de burocracias locais. Obikwelu ficou português. Sorte nossa. Vieira da Silva ficou francesa.
Não sei fazer essas contas, mas era bom verificar se a aplicação integral da legislação portuguesa sobre cotas de emigrantes não teria impedido Obikwelu de ser, hoje, cidadão português.
Nós não somos verdadeiramente racistas nem xenófobos. Mas temos essa tentação. Não somos como os japoneses, que detestam ver estrangeiros a falar Japonês (porque querem manter a sua vida a salvo do olhar dos outros) e que só concedem naturalização a quem é filho de pai e mãe japoneses. Mas tivemos um seleccionador de futebol, não há muitos anos, que distinguia entre "portugueses legítimos" e "os outros", de segunda categoria.
Uma vitória essencialmente portuguesa não foi apenas ver Obikwelu a cortar a meta e ficar à frente de quase toda a gente; foi ver a alegria de muitos portugueses a festejar a sua vitória. Ah, se ele ficasse com a medalha de ouro, e o víssemos, pela televisão, a cantar o hino, então seria o golpe fatal no velho nacionalismo. Figo lá foi resmungando, sugerindo que Deco nunca cantaria o hino como deve ser. Obikwelu também não. Mas a sorte de Portugal é que, ao longo da sua história, teve vozes suficientes a quebrar esse "nacionalismo fundamentalista" - e quase todos eram portugueses, de Francisco de Holanda a Ribeiro Sanches, de Garcia de Orta a Verney. É certo que não tiveram grande destino.
Uma das grandes riquezas actuais do nosso início do século é esta: termos dentro de fronteiras gente que pode acrescentar mais qualquer coisa ao Portugalinho medíocre que se gerou depois dos anos 70. Brasileiros, eslavos, africanos, hispânicos -- temos para com eles um dever de hospitalidade tremendo. Não são apenas uma cota nem mão-de-obra barata para construir estádios, barragens e auto-estradas. Eles podem ajudar-nos a vencer o demónio da pátria.
Jornal de Notícias, 26 de Agosto de 2004
Muitos sociólogos explicaram recentemente, com o contributo da "psicologia de massas" e de alguma intuição sem muita transcendência, que as bandeiras portuguesas do Euro 2004 podiam ser um fenómeno negativo - ou positivo, conforme levassem os portugueses a ultrapassar-se e à mediania em que andavam. Essas explicações não me convenceram nem me comoveram.
A medalha de prata de Francis Obikwelu na corrida dos 100 metros surpreendeu muita gente; no fundo, Obikwelu nasceu em África, fala um Português deficiente e vive a maior parte da sua vida em Espanha, onde treina ferozmente. Em Portugal, segundo li na Imprensa (sobretudo na espanhola, que não deixa de notar os pormenores que lhe interessam), vivia com mais dois amigos num quartinho de 15 metros quadrados, em Belém, até que uma família portuguesa lhe prestou mais atenção, o tratou de mazelas, o cuidou durante as gripes e passou a ser tratada como família. Uma família é isso mesmo. Obikwelu trabalhava nas obras. No jornal madrileno "ABC", o seu agente conta que o viu correr pela primeira vez a conselho de Carla Sacramento e, sem aquecimento, Obikwelu fez 10,25 em 100 metros na pista de cinza do Restelo. Um colosso. Tentou fazer dele cidadão espanhol, mas sem sucesso por causa de burocracias locais. Obikwelu ficou português. Sorte nossa. Vieira da Silva ficou francesa.
Não sei fazer essas contas, mas era bom verificar se a aplicação integral da legislação portuguesa sobre cotas de emigrantes não teria impedido Obikwelu de ser, hoje, cidadão português.
Nós não somos verdadeiramente racistas nem xenófobos. Mas temos essa tentação. Não somos como os japoneses, que detestam ver estrangeiros a falar Japonês (porque querem manter a sua vida a salvo do olhar dos outros) e que só concedem naturalização a quem é filho de pai e mãe japoneses. Mas tivemos um seleccionador de futebol, não há muitos anos, que distinguia entre "portugueses legítimos" e "os outros", de segunda categoria.
Uma vitória essencialmente portuguesa não foi apenas ver Obikwelu a cortar a meta e ficar à frente de quase toda a gente; foi ver a alegria de muitos portugueses a festejar a sua vitória. Ah, se ele ficasse com a medalha de ouro, e o víssemos, pela televisão, a cantar o hino, então seria o golpe fatal no velho nacionalismo. Figo lá foi resmungando, sugerindo que Deco nunca cantaria o hino como deve ser. Obikwelu também não. Mas a sorte de Portugal é que, ao longo da sua história, teve vozes suficientes a quebrar esse "nacionalismo fundamentalista" - e quase todos eram portugueses, de Francisco de Holanda a Ribeiro Sanches, de Garcia de Orta a Verney. É certo que não tiveram grande destino.
Uma das grandes riquezas actuais do nosso início do século é esta: termos dentro de fronteiras gente que pode acrescentar mais qualquer coisa ao Portugalinho medíocre que se gerou depois dos anos 70. Brasileiros, eslavos, africanos, hispânicos -- temos para com eles um dever de hospitalidade tremendo. Não são apenas uma cota nem mão-de-obra barata para construir estádios, barragens e auto-estradas. Eles podem ajudar-nos a vencer o demónio da pátria.
Jornal de Notícias, 26 de Agosto de 2004