agosto 19, 2004

A Casa Pia nunca existiu

Se há coisa desinteressante para tratar hoje é a questão do segredo de Justiça. Se o caso Casa Pia já se transformara em matéria de convicção ("eu acredito que são culpados…" ou "são de certeza inocentes…") alimentada por fugas de informação e por investigações jornalísticas, a questão do "segredo de Justiça" segue pelo mesmo caminho e todos se esforçam por demonstrar quem violou mais ou quem desrespeitou menos o "segredo de Justiça". A Imprensa não está inocente nessa matéria, pois alimentou, em bloco, suspeitas sobre o assunto. Além do mais, alimentou o seu próprio desprestígio; a crer no que se publica hoje, a Imprensa não fez mais do que fomentar fugas ao segredo de Justiça, escutas ilegais, "convicções inabaláveis", simpatias e euforias. Mais: a acreditar nas acusações e queixumes que se lêem na Imprensa, em editoriais e em colunas de opinião, os jornais não fizeram mais do que aproveitar toda e qualquer fuga ao segredo de Justiça - a sua investigação, a acreditar no que se lê, limitou-se a isso.

Não é coisa nova. Cada jornal, ou cada jornalista, cria, no sistema judicial e nas corporações policiais, uma rede de fontes, escutas, influências, simpatias e cumplicidades - a sua investigação depende disso. Mas é uma investigação truncada e limitada à revelação, a conta-gotas, de pormenores abjectos, pequenas notícias escandalosas, primeiras páginas que fazem a glória de uma semana de trabalho, revelações que satisfazem a opinião pública. Em síntese, grande parte da investigação jornalística (eu tenho resistido, por um resto de cumplicidade corporativa, a colocar a expressão entre aspas irónicas) limita-se a usar essas fontes e essas influências. Se a violação do segredo de Justiça foi protagonizada por Adelino Salvado, por João Pedroso ou por outros cavalheiros citados entretanto, não é menos verdade que "soprar para os jornais" é um hábito das democracias. À medida que os "sopros" se vão tornando mais insuportáveis, estamos diante de um vendaval de informações desencontradas e com origem incerta e despropositada, cujo único objectivo é o de salvar o "bloco central dos interesses". Isso já foi conseguido. O processo da Casa Pia é um pudim impressionante em que a opinião pública (e o celebrado "interesse público") está esmagada por todo o género, não só de informações contraditórias, mas também de convicções contraditórias. Neste momento, a principal dúvida reside em saber se a Casa Pia existe mesmo.

A história das cassetes é, provavelmente, o golpe final. Bem podem os defensores do "interesse público" pedir a divulgação, na íntegra, do conteúdo das gravações; não o conseguirão. Os diálogos serão revelados a conta-gotas, parcialmente, omitindo personagens e fragmentos substanciais. O próprio boato que menciona a multiplicação das cópias é perfeitamente compreensível e essa estratégia (e a sua assinatura) é conhecida por qualquer leitor de romances policiais. Desde o início estava escrita a salvação desse "bloco central de interesses" - basta ler os resumos da Imprensa, desde Março do ano passado.

Em síntese: a questão, agora, é a do segredo de Justiça. O país inteiro, cheio de especialistas em processo penal, já esqueceu a Casa Pia.

Jornal de Notícias - 19 de Agosto de 2004