novembro 03, 2005

O que nos ensina o tempo

Passaram 250 anos sobre o terramoto. Sobre o grande terramoto. O debate que, por toda a Europa, se seguiu à tragédia, devia ser reeditado e relançado. Temos sempre a impressão de que os debates de há dois séculos e meio não interessam para o nosso século laico e acometido de outros perigos. Mas os perigos de hoje são os mesmos - as tragédias com nome, as tragédias que ainda não têm nome, os desaires do género humano, as dúvidas, as incertezas, os grandes medos. Os vírus, as pandemias, as designações dessas ondas do mal.

O mal não é uma categoria divina nem uma categoria humana; depende dessa poeira a que chamamos incerteza, entre o céu e a terra (como a poesia de Blake), entre a luz e a sombra, entre o puro e o impuro. O padre Gabriel Malagrida atribuiu à devassidão, à tolerância e aos maus costumes, a tragédia de 1 de Novembro de 1755. O Cavaleiro de Oliveira - cujos textos deviam ser lidos - também atribui culpas, mas à "crendice católica". Dois séculos e meio depois, Deus regressa como uma sombra, uma mancha no panorama, uma dúvida metódica. O tsunami de 2004, tal como o furacão Katrina e outras tragédias recentes transportam a companhia de Deus. Pelo menos a invocação, como se sabe. O tsunami da Ásia castigou crentes (muçulmanos) e infiéis (os turistas do Ocidente), mas foi, segundo vários teólogos escutados na altura, um sinal para castigar a devassidão do Mundo. O furacão Katrina castigou a pátria de Bush e dos infiéis americanos. Esse debate, que já se realizou no Ocidente, continua noutras latitudes. Mas a designação de "latitudes" é enganadora. O próprio tsunami de 2004 constituiu um pretexto para que um responsável da própria igreja anglicana se questionar sobre "a existência de Deus".

O debate não é absurdo nem anacrónico. No final dos anos 60, quando Jean Marie Domenach antecipava o debate, num livro intitulado "O retorno do trágico", estavam aí as respostas para essa inquietação. A efeméride - os 250 anos do terramoto - permitiu reeditar parte dela. Vários romances (como os de Miguel Real, "A voz da Terra", ou de Pedro Almeida Vieira, "O profeta do divino castigo") e ensaios permitem entrever que vivemos as lições do tempo e a incerteza sobre as "lições da História". Rui Tavares publicou, justamente, um dos livros mais cativantes sobre o assunto, "O pequeno livro do grande terramoto" (edição Tinta da China) - um extraordinário guia, tão simples quanto útil e problematizador, sobre as preocupações em redor do "trágico". Justamente, o que Rui Tavares assinala, logo a abrir o livro, é a comparação entre o 11 de Setembro, o incêndio de Roma, o tsunami de 2004 e o terramoto de 1755; certamente que são acontecimentos incomparáveis - uns dependem de factores humanos (o 11 de Setembro), outros dessa incerteza a que chamamos catástrofe e cujo culpado não tem nome.

Um dos problemas que a discussão sobre a catástrofe arrasta consigo é a ideia de "homem providencial". O Marquês de Pombal, por um lado, o "mayor" Giuliani do outro - os "grandes estadistas" nascem das grandes catástrofes e dispõem do tempo para lá das leis e das próprias condições da sociedade. Estamos hoje a assistir, justamente, ao combate entre o "homem comum" e o "homem providencial". As lições do tempo têm um valor relativo, mas quanto mais "normal" for o retrato do nosso mundo, menos trágicas serão as soluções engendradas para explicar o nosso destino. Eis porque o terramoto de 1755 não deve esquecer-se.

Jornal de Notícias - 3 Novembro 2005