As quotas de medicina
Há coisas que nos fariam rir, há anos. Hoje, preocupam-nos. Esta semana, a reitoria da Universidade Federal da Baía, no Brasil, decidiu impor quotas especiais na admissão de novos estudantes nas suas faculdades: quotas para negros, estudantes vindos de sectores sociais desfavorecidos, descendentes de índios e estudantes que procedem das escolas públicas. Para cada um dos itens, a universidade encontra justificações prementes e até razoáveis. Numa sociedade em que os negros são uma percentagem fundamental, é deles também a maior taxa de desemprego e a maior taxa de analfabetismo. A procura de soluções no âmbito da chamada "acção afirmativa" traduz-se pela criação de quotas, medida que já tinha sido testada nos EUA: quotas para negros (ou afro-americanos, como diz a gíria), para mulheres, para orientais ou para hispânicos. Um aluno branco, com média (adaptando os dados à realidade portuguesa) de 17 ou de 18, poderia não ter entrada na universidade - que, ao abrigo da necessidade de cumprir a política de quotas, aceitaria um aluno negro ou hispânico, com média de 10.
Um dos argumentos favoráveis a este tipo de política diz que ela foi responsável pela chegada de algumas vagas de cidadãos destas etnias a empregos e profissões até então apenas reservadas a brancos - e, portanto, contribuiu bastante para o fim da marginalização social e racial, um problema real e indesmentível. A Universidade Federal da Baía seguiu por este caminho. Assim, cerca de 45% das vagas disponíveis no novo ano lectivo estão reservadas para estudantes das escolas públicas, havendo distribuição, por quotas, das restantes vagas. Os resultados serão observáveis daqui a quatro anos: sem dúvida que haverá mais licenciados negros ou de origem índia, mas assistir-se-á, também, a um "nivelamento por baixo" do Ensino, bem como a fuga de muitos alunos da chamada "classe média" para universidades privadas, dado terem sido impedidos de entrar para a pública, ainda que as suas notas fossem altas.
Nem de propósito, a Imprensa de ontem deu conta de um problema semelhante existente em Portugal: os cursos de Medicina têm mulheres a mais. O presidente do Conselho Directivo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, declarou mesmo que terão de ser criadas quotas para homens em Medicina (quanto mais não seja, para urologia e para ortopedia, embora ninguém se tenha preocupado com a quantidade de ginecologistas homens) caso não se altere o modelo de ingresso nesses cursos. Ora, ninguém vê muito bem como se altera "o modelo de ingresso" sem ser através de quotas ou de imposição artificial de qualquer outro mecanismo de selecção. A declaração mais espantosa vem, no entanto, do bastonário da própria Ordem dos Médicos, Germano de Sousa: é que "as estudantes têm mais juízo e estudam mais do que os rapazes" e por isso elas dominam, actualmente, os cursos de Medicina. Ou seja: elas lutaram mais, estudaram mais, trabalharam mais, estão melhor preparadas. Nada de admirar.
É um caso sociológico novo que devia preocupar os responsáveis. Admito facilmente que as declarações do prof. António Sousa Pereira, do Instituto Abel Salazar, pedindo quotas, não configurem alguma forma de machismo. Mas a situação é caricata: tomando as rédeas do seu destino, estudando e preparando-se para a entrada na universidade com nas mesmas condições que os seus colegas rapazes, elas, as raparigas, foram melhores, são melhores. Em Medicina, mas também em muitos outros cursos.
A sociedade quer, no entanto, por razões plausíveis e até aceitáveis, limitar-lhes a sua supremacia, invocando até a maternidade como factor de distúrbio na sua prática profissional. Temos aí um problema, meus senhores. Um problema sério.
Jornal de Notícias - 3 de Junho de 2004
Um dos argumentos favoráveis a este tipo de política diz que ela foi responsável pela chegada de algumas vagas de cidadãos destas etnias a empregos e profissões até então apenas reservadas a brancos - e, portanto, contribuiu bastante para o fim da marginalização social e racial, um problema real e indesmentível. A Universidade Federal da Baía seguiu por este caminho. Assim, cerca de 45% das vagas disponíveis no novo ano lectivo estão reservadas para estudantes das escolas públicas, havendo distribuição, por quotas, das restantes vagas. Os resultados serão observáveis daqui a quatro anos: sem dúvida que haverá mais licenciados negros ou de origem índia, mas assistir-se-á, também, a um "nivelamento por baixo" do Ensino, bem como a fuga de muitos alunos da chamada "classe média" para universidades privadas, dado terem sido impedidos de entrar para a pública, ainda que as suas notas fossem altas.
Nem de propósito, a Imprensa de ontem deu conta de um problema semelhante existente em Portugal: os cursos de Medicina têm mulheres a mais. O presidente do Conselho Directivo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, declarou mesmo que terão de ser criadas quotas para homens em Medicina (quanto mais não seja, para urologia e para ortopedia, embora ninguém se tenha preocupado com a quantidade de ginecologistas homens) caso não se altere o modelo de ingresso nesses cursos. Ora, ninguém vê muito bem como se altera "o modelo de ingresso" sem ser através de quotas ou de imposição artificial de qualquer outro mecanismo de selecção. A declaração mais espantosa vem, no entanto, do bastonário da própria Ordem dos Médicos, Germano de Sousa: é que "as estudantes têm mais juízo e estudam mais do que os rapazes" e por isso elas dominam, actualmente, os cursos de Medicina. Ou seja: elas lutaram mais, estudaram mais, trabalharam mais, estão melhor preparadas. Nada de admirar.
É um caso sociológico novo que devia preocupar os responsáveis. Admito facilmente que as declarações do prof. António Sousa Pereira, do Instituto Abel Salazar, pedindo quotas, não configurem alguma forma de machismo. Mas a situação é caricata: tomando as rédeas do seu destino, estudando e preparando-se para a entrada na universidade com nas mesmas condições que os seus colegas rapazes, elas, as raparigas, foram melhores, são melhores. Em Medicina, mas também em muitos outros cursos.
A sociedade quer, no entanto, por razões plausíveis e até aceitáveis, limitar-lhes a sua supremacia, invocando até a maternidade como factor de distúrbio na sua prática profissional. Temos aí um problema, meus senhores. Um problema sério.
Jornal de Notícias - 3 de Junho de 2004
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