Entrevista a Vergílio Ferreira
Aos setenta e dois anos, Vergílio Ferreira publica Arte Tempo (Rolim), um ensaio, nos próximos dias. Para trás ficaram dezanove livros de ficção, cinco volumes de uma Conta-Corrente polemica e apaixonada e nove livros de ensaio. Mas, a vida é só essa bibliografia, ainda que sendo a vida de um escritor?
«Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos» — esta frase escrevia-a Vergílio Ferreira em 1984 e pode resumir aquilo que de mais constante ressoa numa obra de ficção que, desde O Caminho Fica Longe até ao seu mais recente romance, Até ao Fim, vem repetindo e reafirmando espantos sucessivos, inquietações, interrogações e incertezas.
Toda a obra de ficção de Vergílio Ferreira habita aí, na extrema singularidade das interrogações que romances como Alegria Breve, Cântico Final, Aparição, Rápida, a Sombra ou Para Sempre, não cessam de reinventar aos olhos de muitos leitores. É essa singularidade que atrai as atenções. Na literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente na ficção, a presença de Vergílio Ferreira não é unicamente literária: trata-se da presença de uma problemática e de um largo conjunto de duvidas sobre aquilo que de alguma forma designamos de destino, futuro, ser. Interrogação sobre o ser, sobre aquilo que o mundo é na nossa presença e na nossa insistência em permanecer-mos presentes, a obra deste homem não e redutível a nenhuma escola ou corrente literária. É ele próprio que o diz quando afirma que a literatura (o romance...) dá a voz ao que, vindo do silencio, traduz alguma coisa que está para além dela. Por isso se torna tão significativa a utilização da palavra invisível na sua obra — e por isso, ainda, é tão singular o seu trajecto como escritor.
Não há em Vergílio Ferreira, um lugar português: nascida com o fulgor do existencialismo e com os grandes debates sobre a dimensão metafísica do homem, a obra deste beirão (nascido em Melo, Gouveia, há setenta e dois anos) não é o lugar de nenhuma inquietação sobre o nosso destino senão sobre o nosso destino como homens, apenas homens (titulo, alias, de uma colectânea de contos seus).
Depois de Para Sempre (1983), um dos mais belos romances Portugueses do nosso tempo, Vergílio Ferreira publicou, no Verão passado, Até ao Fim — e prepara-se para assistir ao lançamento de um ensaio, Arte Tempo (Edições Rolim), enquanto termina as primeiras paginas de um novo romance.
P. — Continua a acreditar no romance como há alguns anos atrás?
R. — Não. Creio que não. O romance acabou, ou pelo menos acabou uma dada forma clássica de praticar e de ler o romance — como ele nos chegava do século passado e da época de ouro deste século. As ligações do romance contemporâneo com o ensaio e outras formas de escrita não propriamente ficcionais fazem-me pensar que isso a que você chama romance está com os dias contados. A nossa imagem do mundo mudou. A forma como víamos o mundo foi mudando. O romance também.
P — Penso que Invocação ao Meu Corpo é uma dessas obras de compromisso, tal como Carta ao Futuro...
R. — Talvez. São dimensões diferentes mas, de qualquer modo creio que Invocação ao Meu Corpo representa para mim uma obra de mudança no tipo de escrita romanesca que ate aí eu tinha realizado. Sem o saber, evidentemente.
P. — O romance foi um dos mitos do nosso tempo?
R. — Foi uma imagem do nosso tempo, uma visão de algum modo realizadora do nosso tempo. Houve um tempo em que não era possível ver a literatura sem o romance, sem essa construção narrativa. Era uma espécie de representação possível. Se foi um mito, acho que não. Foi mais uma ideia datada do que devia ser a literatura e que se foi transformando numa espécie de objecto de consumo corrente. Creio que o romance teve uma época.
P. — A sua ideia de literatura, ou a ideia que dá dos seus romances não é a de uma construção que termina em si própria.
R. — Há coisas a mais no mundo para podermos fixar-nos apenas num universo tão pequeno como é o universo do livro. Aquilo que eu pretendi, e que penso ter conseguido, em certa medida, era transmitir uma dada ideia do mundo e das inquietações que o mundo suscitava através do romance. É evidente que isso pode provocar algumas acusações interessantes em relação aquilo que eu próprio escrevi, mas poderia justifica-lo.
P. — Acha que o romance foi, então, a imagem de uma época?
R. — Sim. A representação literária de uma época.
P. — De que maneira é que se vê ou revê nos seus romances?
R. — Creio que de todas as maneiras. Os romances que escrevi foram, de alguma maneira, espelhos de outra coisa que passava por eles. A vida, por exemplo.
P. — A sua passagem pelo neo-realismo foi passageira, ou constituiu uma marca fundamental no seu trajecto como escritor?
R. — Creio que grande parte, ou mesmo a quase totalidade de escritores da minha geração passou pelo neo-realismo. Foi um acontecimento fundamental, a guerra, como sabe. A postura neo-reailista partia do principio de que a literatura, ou o romance, como queira, poderiam colaborar num projecto mais vasto, que era o da transformação da sociedade e do mundo. Todos nós acreditámos nisso, como é bom de ver.
P. — O que é que o fez mudar?
R. — Muitas coisas. Mas o grande acontecimento do nosso tempo foi a destruição do grande mito do nosso século - que foi o mito comunista. Isto é importantíssimo. Repare: o mito comunista foi o grande sucedâneo de todos os mitos anteriores. Enquanto uma corrente política se preocupa com determinados sectores da vida, o comunismo preocupou-se com todos, incluindo a religião, instituindo uma espécie de religião privada...
P. — Acreditou nesse mito? Foi comunista?
R. — Não o fui, só por acaso. Isto é: nunca estive inscrito. Se calhar fui militante mas nunca estive inscrito. Calhou não me inscrever...
P. — Foi quando estava em Bragança?
R. — Exacto. Falhou um contacto que tinha sido preparado e entretanto eu fui reflectindo, vendo bem as coisas. Não nos esqueçamos de que estamos no fim da II Guerra...
P. — Como é que passou da fase neo-realista e de simpatias pelo comunismo até uma fase anti-comunista?
R. — Bom, eu não sou anti-comunista. O anti também é uma militância tal como o ateu também é um militante. Eu não sou ateu — sou agnóstico. São coisas diferentes. Não vou agora meter-me em cruzadas anti-comunistas — sou apenas uma pessoa que cortou com uma dada visão do mundo. Sou uma pessoa a quem a verdade se revelou, tanto quanto eu a posso conceber como verdade. O comunismo realizou uma absorção de todos os aspectos da vida: tinha propostas para a arte, política, religião, economia... Não é por acaso que no partido existe o secretismo, dedicação, hierarquia, etc. Há um aspecto religioso nisso tudo. Há um poeta nosso — não vou dizer-lhe quem é — que fez uma quadrinha a que eu acho muita piada: «Ó meu querido/Partido Comunista Português/ /Ao dares à vida sentido/Deste-me a vida outra vez.» Isto é profundamente verdadeiro, e o comunismo veio substituir mitos, e dar uma chance de salvação...
P. — Diz em vários lugares dos seus livros que nós não sabemos bem para onde vamos, estamos como num aquário. No entanto, a sua vida é feita de eternidades. Fala de «para sempre», de «até ao fim»... Essa procura de eternidade no plano romanesco não esta em contradição com o que diz nos ensaios — no plano filosófico, portanto?
R. — Não sei se é contradição...
P. — Talvez sejam duas faces... dois aspectos...
R. — Está certo. A eternidade em si representa uma certa fascinação. Não o posso esquecer... Além disso, quando falo de «para sempre» ou de «até ao fim», falo de um absoluto, de uma eternidade nos limites da vida, porque a vida, para mim é um absoluto e não é mais nada para além dela... Mas a concepção que eu tenho da eternidade é a da suspensão do tempo. Ou, se quer: sinto a eternidade, por exemplo, naquilo que suspende o tempo, na fruição da obra de arte... Em tudo aquilo que eu escrevi, esses conceitos são termos de referência... para me explicar diante de mim próprio...
P. — isso acontece também com Deus... Você está sempre a dizer que Deus não existe, e está também sempre a falar de Deus...
R. — Mas Deus existe ou como problema ou como ponto de referenda... É um ponto de referenda para nos situarmos. A eternidade é (no que diz respeito à vida), o facto de se conceber a vida como um absoluto, como um total: para lá ou para cá dela não há mais nada... Esse «para sempre» não ultrapassa a morte... tal como o «até ao fim« é só até ao fim da vida.
P. — De que maneira é que «para sempre» ou «até ao fim» têm a ver não com aquilo que escreveu mas com aquilo que é ou foi a sua vida?
R. — Toda a obra que eu escrevo tem a ver com a minha vida, suponho eu. Ou então eu não entendo bem a sua pergunta. Quer saber se o que eu escrevo tem a ver com a minha vida?
P. — Exactamente.
R. — Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, no fim de contas, é um resumo da minha vida, das minhas obsessões, das minhas preocupações.
P. — E teve muitas obsessões ao longo da sua vida?
R. — Creio que sim. Devo ter tido. Creio que já não me lembro. Mas esta é fundamental; o problema de me interrogar sobre o meu destino, de dar significação a tudo o que me ocorre, ao modo como ele (mundo) me é. A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. Portanto, a vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, aquela de que fui colhendo outras obsessões secundárias. Como sabe, as obsessões secundárias são mais importantes, às vezes, que as obsessões chamadas principais...
P. — E o medo da morte? Já teve medo da morte?
R. — Não confundamos medo com intriga, com tentativa de vencer o muro para Ihe achar uma significação. Não confundamos isso. Medo da morte toda a gente tem...
P. — ... mas já teve ou não?
R. — Como sabe, eu já tive a morte à minha frente quando me aconteceu aquele enfarte de miocárdio. E disse a minha mulher: «eu vou morrer». E perdi a consciência. Sentia que o mundo estava a desaparecer diante de mim. De resto, nessa altura estamos tão preocupados com a morte real que não pensamos na morte como ela se nos representa neste momento, falando dela como de uma ficção...
P. — Mas reflecte sobre isso?
R. — Sim, mas não é um problema doentio. As pessoas geralmente não reflectem nem querem que se fale disso. Ainda há pouco tempo saiu um livro do Saul Bellow em que ele retoma alguns problemas metafísicos fundamentais — e alguém que escreveu uma crítica do livro dizia que «essas coisas já não interessam hoje em dia, que há trinta ou quarenta anos sim, tinham importância»... Isto é ridículo! Estes problemas não se resolvem! Isto é um problema de sempre. É natural que as pessoas queiram mesmo reflectir sobre isso mas a maior parte dos «observadores atentos» de hoje dão logo respostas como se isso fosse uma pergunta. Ora, isso não é uma pergunta. As respostas vêm da sacristia, do confessionário, do partido. O problema não é esse. É que essas questões não são perguntas, são interrogações e as interrogações não têm resposta. Ou tem-na numa religião.
P. — Continua a sentir-se inquietado pelas interrogações como as desse tipo?
R. — Muito menos... De vez em quando a intriga sobe, evidentemente. Mas por que razão e que isso acontece? Por causa da própria fadiga de questionar e por causa da idade (porque a natureza, apesar de tudo, está bem feita...). À medida que eu vou chegando ao fim (tenho uma carga de anos...), vou guardando silêncio. Creio que a natureza se encarrega de me ir organizando a maneira de ser e de sentir para me harmonizar com a proximidade da morte. Da morte real. Amanhã ou depois. De facto, esse tipo de questões inquietam-me menos. Cada idade está organizada para nos orientarmos da dada maneira, as vezes voltam, não o nego...
P.— Nunca fez balanços de si próprio?
R. — Não. Não gosto muito disso. As pessoas têm a ideia de que eu vivo muito no passado. Não. O passado e legendário. Para mim, é uma fascinação como a obra de arte. Sinto nostalgia, evidememente. Mas é uma nostalgia sem tristeza. Por isso é que eu não recordo — evoco. Não tenho grandes ilusões sobre isso de voltar à origem. Estou aqui como no princípio das minhas coisas. No princípio de mim. O passado tem uma marca de eternidade, é o que é.
P.— Mas nos seus livros fala muito dele, do passado. Evoca-o?
R.— Bom, sim. Porque a matéria estética está lá feita, de certo modo, anterior ao presente, já corporizada. Nós vemos bem aquilo que não vemos, sobretudo — e o passado é aquilo que nós vemos menos. Aquilo que está mais perto dos olhos são os próprios olhos e nós nunca os vemos. O passado, para mim, existe como matéria estética, já feita para a sensibilidade estética. É mais fácil, depois, essa recriação em livro. Os meus livros são, fundamentalmente, formas de viver o passado sem o magoar, sem o ferir. Detesto ferir.
P.— Que significado dá à expressão «para sempre?»
R.— Não sei. Você faz-me uma pergunta agora, e agora e que eu tenho de pensar...
P.— Claro...
R.— Não sei... é uma certa dose de nostalgia, de fim de vida que se realizou completamente. É isso. Completamente. É a historia de um homem que fechou o ciclo da vida e que rememora, procurando cortar um pouco o mel e a doçura desse prazer da evocação com acidez e ironia.
P.— Por que razão insistiu nessa versão da vida com este novo titulo, Até ao Fim?
R.— Porque eu queria dizer, de algum modo, que a destruição dos valores (que é o que marca de um modo geral, os actos que hoje dominam certas áreas da juventude) é uma coisa terrível. E queria, por uma razão de amizade para com o António Ramos Rosa, encontrar um verso dele que significasse isso, que dissesse isso. E foi: «perseguido até ao fim, acho o mar». Este verso resume o meu objectivo. Achar o mar como um símbolo, como uma metáfora dessa alegria, que é a alegria da pacificação, da eternidade, da plenitude, da juventude plena. Depois há outra coisa, evidentemente: eu quis sempre que os títulos dos meus livros tivessem alguma coisa de si próprios, um certo valor estético. Não me interessam os títulos puramente designativos, como o rótulo de um frasco. Quero que o titulo seja em si mesmo um sinal e um valor estético e poético. Que fosse uma abertura, um começo de um poema.
P.— Que coisas cresceram em si desde O Caminho Fica Longe até este seu último romance?
R.— Cresci eu todo. Em mim cresceu tudo. Penso, de qualquer modo, que aquilo que mais cresceu em mim foi o carácter de adulto.
P.— Isso trouxe-Ihe desilusões?
R. — Não tem a ver com desilusões. Tem a ver com a justa perspectivação das coisas.
P. —Mas teve muitas desilusões?
R. — Pois tive. Na vida corrente, a vinda para Lisboa foi muito desagradável sobretudo no domínio pessoal. E isso já foi há muito tempo. Mas essas coisas pessoais não interessam à conversa...
P.— Interessam sim...
R.— Não interessam nada... eu sou muito assim, desculpe. Vir para Lisboa foi extremamente difícil por que eu vim de Évora, de um ambiente que estava mais certo comigo, que estava certo com aquilo que anteriormente eu tinha sido — e até estava certo com aquilo que escrevi, com os meus livros. O ambiente de lisboeta, inicialmente, foi muito mau, porque fui recebido como um traidor...
P.— Um traidor?
R.— Sim... Um problema ideológico... Pergunte a esse senhor que disse que Aparição era um livro reaccionário. Vim para Lisboa quando publiquei Aparição e isso caiu mal nos neo-realistas. Só houve uma pessoa que tomou o meu partido na altura, o João Rui de Sousa. Ninguém mais. Foi tudo a arrear. O que é que estava em causa? Naturalmente, a pessoa deles, porque é sempre isso que está em causa, só. O resto, religiões, política, sociedade — são pretextos. Uma pessoa (essas pessoas...) quer é afirmar-se a si. Nós temos duas vozes em nós. Uma diz «ama o teu semelhante porque é teu irmão». Outra diz «esmaga o teu irmão porque ele é teu concorrente...» Ora, esta é a voz que permanece... Questões antigas...
P.— Na Conta-Corrente zangou-se com algumas pessoas. Isso trouxe-lhe problemas?...
R.— ... ah! Claro que me trouxe muitos problemas. Só se eu fosse insensível a muitas maldades que me fizeram é que não reconhecia isso. Se uma pessoa me ofende e eu não reajo, acho que essa pessoa fica um pouco decepcionada. Portanto, eu devo reagir. Até por uma questão de educação... E ao mesmo tempo alivio-me...
P.— Como é que se vê no meio literário português?
R.— Em certa medida, e eu não gosto nada da expressão, vejo-me um pouco como um marginal. Sou um marginal e não me sinto mal por isso. Já houve quem dissesse que eu era um escritor maldito. Não. Não sou nada disso. Fico à margem da história das principais festividades literárias, é certo. E claro que esse não é um lugar muito agradável porque cai lá muito pó e muito lixo... Mas, de facto, não estou na estrada brilhante dos triunfadores, esses que vão por aí fora. Eu deixo-os ir. E rio-me muitas vezes das figuras que eles fazem...
P. — Acha que há corredores profissionais?
R. — Ah, sim...Literatura de consumo, literatura que se esquece logo. São alguns, como parte da nova literatura norte-americana, pelo menos entre os mais jovens. Eu li o Mclnerney, As Mil Luzes de Nova lorque e não me pareceu mau de todo. Mas esses livros são medíocres, uma espécie de literatura de maus costumes...
P. — Mas, sente-se isolado na literatura portuguesa contemporânea?
R. — Não sei. E inacreditável, mas eu não sei mesmo. Tenho escrito aquilo que eu penso, o que é uma das formas de praticar o romance. Tenho uma família literária pequena. Mas, repare, já tenho alguma idade. Fui ficando, sabe-se lá até quando a vida mo vai permitir. Mas gosto. Gosto muito.
Entrevista de Francisco José Viegas
Revista Ler – Primavera 1988
«Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos» — esta frase escrevia-a Vergílio Ferreira em 1984 e pode resumir aquilo que de mais constante ressoa numa obra de ficção que, desde O Caminho Fica Longe até ao seu mais recente romance, Até ao Fim, vem repetindo e reafirmando espantos sucessivos, inquietações, interrogações e incertezas.
Toda a obra de ficção de Vergílio Ferreira habita aí, na extrema singularidade das interrogações que romances como Alegria Breve, Cântico Final, Aparição, Rápida, a Sombra ou Para Sempre, não cessam de reinventar aos olhos de muitos leitores. É essa singularidade que atrai as atenções. Na literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente na ficção, a presença de Vergílio Ferreira não é unicamente literária: trata-se da presença de uma problemática e de um largo conjunto de duvidas sobre aquilo que de alguma forma designamos de destino, futuro, ser. Interrogação sobre o ser, sobre aquilo que o mundo é na nossa presença e na nossa insistência em permanecer-mos presentes, a obra deste homem não e redutível a nenhuma escola ou corrente literária. É ele próprio que o diz quando afirma que a literatura (o romance...) dá a voz ao que, vindo do silencio, traduz alguma coisa que está para além dela. Por isso se torna tão significativa a utilização da palavra invisível na sua obra — e por isso, ainda, é tão singular o seu trajecto como escritor.
Não há em Vergílio Ferreira, um lugar português: nascida com o fulgor do existencialismo e com os grandes debates sobre a dimensão metafísica do homem, a obra deste beirão (nascido em Melo, Gouveia, há setenta e dois anos) não é o lugar de nenhuma inquietação sobre o nosso destino senão sobre o nosso destino como homens, apenas homens (titulo, alias, de uma colectânea de contos seus).
Depois de Para Sempre (1983), um dos mais belos romances Portugueses do nosso tempo, Vergílio Ferreira publicou, no Verão passado, Até ao Fim — e prepara-se para assistir ao lançamento de um ensaio, Arte Tempo (Edições Rolim), enquanto termina as primeiras paginas de um novo romance.
P. — Continua a acreditar no romance como há alguns anos atrás?
R. — Não. Creio que não. O romance acabou, ou pelo menos acabou uma dada forma clássica de praticar e de ler o romance — como ele nos chegava do século passado e da época de ouro deste século. As ligações do romance contemporâneo com o ensaio e outras formas de escrita não propriamente ficcionais fazem-me pensar que isso a que você chama romance está com os dias contados. A nossa imagem do mundo mudou. A forma como víamos o mundo foi mudando. O romance também.
P — Penso que Invocação ao Meu Corpo é uma dessas obras de compromisso, tal como Carta ao Futuro...
R. — Talvez. São dimensões diferentes mas, de qualquer modo creio que Invocação ao Meu Corpo representa para mim uma obra de mudança no tipo de escrita romanesca que ate aí eu tinha realizado. Sem o saber, evidentemente.
P. — O romance foi um dos mitos do nosso tempo?
R. — Foi uma imagem do nosso tempo, uma visão de algum modo realizadora do nosso tempo. Houve um tempo em que não era possível ver a literatura sem o romance, sem essa construção narrativa. Era uma espécie de representação possível. Se foi um mito, acho que não. Foi mais uma ideia datada do que devia ser a literatura e que se foi transformando numa espécie de objecto de consumo corrente. Creio que o romance teve uma época.
P. — A sua ideia de literatura, ou a ideia que dá dos seus romances não é a de uma construção que termina em si própria.
R. — Há coisas a mais no mundo para podermos fixar-nos apenas num universo tão pequeno como é o universo do livro. Aquilo que eu pretendi, e que penso ter conseguido, em certa medida, era transmitir uma dada ideia do mundo e das inquietações que o mundo suscitava através do romance. É evidente que isso pode provocar algumas acusações interessantes em relação aquilo que eu próprio escrevi, mas poderia justifica-lo.
P. — Acha que o romance foi, então, a imagem de uma época?
R. — Sim. A representação literária de uma época.
P. — De que maneira é que se vê ou revê nos seus romances?
R. — Creio que de todas as maneiras. Os romances que escrevi foram, de alguma maneira, espelhos de outra coisa que passava por eles. A vida, por exemplo.
P. — A sua passagem pelo neo-realismo foi passageira, ou constituiu uma marca fundamental no seu trajecto como escritor?
R. — Creio que grande parte, ou mesmo a quase totalidade de escritores da minha geração passou pelo neo-realismo. Foi um acontecimento fundamental, a guerra, como sabe. A postura neo-reailista partia do principio de que a literatura, ou o romance, como queira, poderiam colaborar num projecto mais vasto, que era o da transformação da sociedade e do mundo. Todos nós acreditámos nisso, como é bom de ver.
P. — O que é que o fez mudar?
R. — Muitas coisas. Mas o grande acontecimento do nosso tempo foi a destruição do grande mito do nosso século - que foi o mito comunista. Isto é importantíssimo. Repare: o mito comunista foi o grande sucedâneo de todos os mitos anteriores. Enquanto uma corrente política se preocupa com determinados sectores da vida, o comunismo preocupou-se com todos, incluindo a religião, instituindo uma espécie de religião privada...
P. — Acreditou nesse mito? Foi comunista?
R. — Não o fui, só por acaso. Isto é: nunca estive inscrito. Se calhar fui militante mas nunca estive inscrito. Calhou não me inscrever...
P. — Foi quando estava em Bragança?
R. — Exacto. Falhou um contacto que tinha sido preparado e entretanto eu fui reflectindo, vendo bem as coisas. Não nos esqueçamos de que estamos no fim da II Guerra...
P. — Como é que passou da fase neo-realista e de simpatias pelo comunismo até uma fase anti-comunista?
R. — Bom, eu não sou anti-comunista. O anti também é uma militância tal como o ateu também é um militante. Eu não sou ateu — sou agnóstico. São coisas diferentes. Não vou agora meter-me em cruzadas anti-comunistas — sou apenas uma pessoa que cortou com uma dada visão do mundo. Sou uma pessoa a quem a verdade se revelou, tanto quanto eu a posso conceber como verdade. O comunismo realizou uma absorção de todos os aspectos da vida: tinha propostas para a arte, política, religião, economia... Não é por acaso que no partido existe o secretismo, dedicação, hierarquia, etc. Há um aspecto religioso nisso tudo. Há um poeta nosso — não vou dizer-lhe quem é — que fez uma quadrinha a que eu acho muita piada: «Ó meu querido/Partido Comunista Português/ /Ao dares à vida sentido/Deste-me a vida outra vez.» Isto é profundamente verdadeiro, e o comunismo veio substituir mitos, e dar uma chance de salvação...
P. — Diz em vários lugares dos seus livros que nós não sabemos bem para onde vamos, estamos como num aquário. No entanto, a sua vida é feita de eternidades. Fala de «para sempre», de «até ao fim»... Essa procura de eternidade no plano romanesco não esta em contradição com o que diz nos ensaios — no plano filosófico, portanto?
R. — Não sei se é contradição...
P. — Talvez sejam duas faces... dois aspectos...
R. — Está certo. A eternidade em si representa uma certa fascinação. Não o posso esquecer... Além disso, quando falo de «para sempre» ou de «até ao fim», falo de um absoluto, de uma eternidade nos limites da vida, porque a vida, para mim é um absoluto e não é mais nada para além dela... Mas a concepção que eu tenho da eternidade é a da suspensão do tempo. Ou, se quer: sinto a eternidade, por exemplo, naquilo que suspende o tempo, na fruição da obra de arte... Em tudo aquilo que eu escrevi, esses conceitos são termos de referência... para me explicar diante de mim próprio...
P. — isso acontece também com Deus... Você está sempre a dizer que Deus não existe, e está também sempre a falar de Deus...
R. — Mas Deus existe ou como problema ou como ponto de referenda... É um ponto de referenda para nos situarmos. A eternidade é (no que diz respeito à vida), o facto de se conceber a vida como um absoluto, como um total: para lá ou para cá dela não há mais nada... Esse «para sempre» não ultrapassa a morte... tal como o «até ao fim« é só até ao fim da vida.
P. — De que maneira é que «para sempre» ou «até ao fim» têm a ver não com aquilo que escreveu mas com aquilo que é ou foi a sua vida?
R. — Toda a obra que eu escrevo tem a ver com a minha vida, suponho eu. Ou então eu não entendo bem a sua pergunta. Quer saber se o que eu escrevo tem a ver com a minha vida?
P. — Exactamente.
R. — Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, no fim de contas, é um resumo da minha vida, das minhas obsessões, das minhas preocupações.
P. — E teve muitas obsessões ao longo da sua vida?
R. — Creio que sim. Devo ter tido. Creio que já não me lembro. Mas esta é fundamental; o problema de me interrogar sobre o meu destino, de dar significação a tudo o que me ocorre, ao modo como ele (mundo) me é. A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. Portanto, a vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, aquela de que fui colhendo outras obsessões secundárias. Como sabe, as obsessões secundárias são mais importantes, às vezes, que as obsessões chamadas principais...
P. — E o medo da morte? Já teve medo da morte?
R. — Não confundamos medo com intriga, com tentativa de vencer o muro para Ihe achar uma significação. Não confundamos isso. Medo da morte toda a gente tem...
P. — ... mas já teve ou não?
R. — Como sabe, eu já tive a morte à minha frente quando me aconteceu aquele enfarte de miocárdio. E disse a minha mulher: «eu vou morrer». E perdi a consciência. Sentia que o mundo estava a desaparecer diante de mim. De resto, nessa altura estamos tão preocupados com a morte real que não pensamos na morte como ela se nos representa neste momento, falando dela como de uma ficção...
P. — Mas reflecte sobre isso?
R. — Sim, mas não é um problema doentio. As pessoas geralmente não reflectem nem querem que se fale disso. Ainda há pouco tempo saiu um livro do Saul Bellow em que ele retoma alguns problemas metafísicos fundamentais — e alguém que escreveu uma crítica do livro dizia que «essas coisas já não interessam hoje em dia, que há trinta ou quarenta anos sim, tinham importância»... Isto é ridículo! Estes problemas não se resolvem! Isto é um problema de sempre. É natural que as pessoas queiram mesmo reflectir sobre isso mas a maior parte dos «observadores atentos» de hoje dão logo respostas como se isso fosse uma pergunta. Ora, isso não é uma pergunta. As respostas vêm da sacristia, do confessionário, do partido. O problema não é esse. É que essas questões não são perguntas, são interrogações e as interrogações não têm resposta. Ou tem-na numa religião.
P. — Continua a sentir-se inquietado pelas interrogações como as desse tipo?
R. — Muito menos... De vez em quando a intriga sobe, evidentemente. Mas por que razão e que isso acontece? Por causa da própria fadiga de questionar e por causa da idade (porque a natureza, apesar de tudo, está bem feita...). À medida que eu vou chegando ao fim (tenho uma carga de anos...), vou guardando silêncio. Creio que a natureza se encarrega de me ir organizando a maneira de ser e de sentir para me harmonizar com a proximidade da morte. Da morte real. Amanhã ou depois. De facto, esse tipo de questões inquietam-me menos. Cada idade está organizada para nos orientarmos da dada maneira, as vezes voltam, não o nego...
P.— Nunca fez balanços de si próprio?
R. — Não. Não gosto muito disso. As pessoas têm a ideia de que eu vivo muito no passado. Não. O passado e legendário. Para mim, é uma fascinação como a obra de arte. Sinto nostalgia, evidememente. Mas é uma nostalgia sem tristeza. Por isso é que eu não recordo — evoco. Não tenho grandes ilusões sobre isso de voltar à origem. Estou aqui como no princípio das minhas coisas. No princípio de mim. O passado tem uma marca de eternidade, é o que é.
P.— Mas nos seus livros fala muito dele, do passado. Evoca-o?
R.— Bom, sim. Porque a matéria estética está lá feita, de certo modo, anterior ao presente, já corporizada. Nós vemos bem aquilo que não vemos, sobretudo — e o passado é aquilo que nós vemos menos. Aquilo que está mais perto dos olhos são os próprios olhos e nós nunca os vemos. O passado, para mim, existe como matéria estética, já feita para a sensibilidade estética. É mais fácil, depois, essa recriação em livro. Os meus livros são, fundamentalmente, formas de viver o passado sem o magoar, sem o ferir. Detesto ferir.
P.— Que significado dá à expressão «para sempre?»
R.— Não sei. Você faz-me uma pergunta agora, e agora e que eu tenho de pensar...
P.— Claro...
R.— Não sei... é uma certa dose de nostalgia, de fim de vida que se realizou completamente. É isso. Completamente. É a historia de um homem que fechou o ciclo da vida e que rememora, procurando cortar um pouco o mel e a doçura desse prazer da evocação com acidez e ironia.
P.— Por que razão insistiu nessa versão da vida com este novo titulo, Até ao Fim?
R.— Porque eu queria dizer, de algum modo, que a destruição dos valores (que é o que marca de um modo geral, os actos que hoje dominam certas áreas da juventude) é uma coisa terrível. E queria, por uma razão de amizade para com o António Ramos Rosa, encontrar um verso dele que significasse isso, que dissesse isso. E foi: «perseguido até ao fim, acho o mar». Este verso resume o meu objectivo. Achar o mar como um símbolo, como uma metáfora dessa alegria, que é a alegria da pacificação, da eternidade, da plenitude, da juventude plena. Depois há outra coisa, evidentemente: eu quis sempre que os títulos dos meus livros tivessem alguma coisa de si próprios, um certo valor estético. Não me interessam os títulos puramente designativos, como o rótulo de um frasco. Quero que o titulo seja em si mesmo um sinal e um valor estético e poético. Que fosse uma abertura, um começo de um poema.
P.— Que coisas cresceram em si desde O Caminho Fica Longe até este seu último romance?
R.— Cresci eu todo. Em mim cresceu tudo. Penso, de qualquer modo, que aquilo que mais cresceu em mim foi o carácter de adulto.
P.— Isso trouxe-Ihe desilusões?
R. — Não tem a ver com desilusões. Tem a ver com a justa perspectivação das coisas.
P. —Mas teve muitas desilusões?
R. — Pois tive. Na vida corrente, a vinda para Lisboa foi muito desagradável sobretudo no domínio pessoal. E isso já foi há muito tempo. Mas essas coisas pessoais não interessam à conversa...
P.— Interessam sim...
R.— Não interessam nada... eu sou muito assim, desculpe. Vir para Lisboa foi extremamente difícil por que eu vim de Évora, de um ambiente que estava mais certo comigo, que estava certo com aquilo que anteriormente eu tinha sido — e até estava certo com aquilo que escrevi, com os meus livros. O ambiente de lisboeta, inicialmente, foi muito mau, porque fui recebido como um traidor...
P.— Um traidor?
R.— Sim... Um problema ideológico... Pergunte a esse senhor que disse que Aparição era um livro reaccionário. Vim para Lisboa quando publiquei Aparição e isso caiu mal nos neo-realistas. Só houve uma pessoa que tomou o meu partido na altura, o João Rui de Sousa. Ninguém mais. Foi tudo a arrear. O que é que estava em causa? Naturalmente, a pessoa deles, porque é sempre isso que está em causa, só. O resto, religiões, política, sociedade — são pretextos. Uma pessoa (essas pessoas...) quer é afirmar-se a si. Nós temos duas vozes em nós. Uma diz «ama o teu semelhante porque é teu irmão». Outra diz «esmaga o teu irmão porque ele é teu concorrente...» Ora, esta é a voz que permanece... Questões antigas...
P.— Na Conta-Corrente zangou-se com algumas pessoas. Isso trouxe-lhe problemas?...
R.— ... ah! Claro que me trouxe muitos problemas. Só se eu fosse insensível a muitas maldades que me fizeram é que não reconhecia isso. Se uma pessoa me ofende e eu não reajo, acho que essa pessoa fica um pouco decepcionada. Portanto, eu devo reagir. Até por uma questão de educação... E ao mesmo tempo alivio-me...
P.— Como é que se vê no meio literário português?
R.— Em certa medida, e eu não gosto nada da expressão, vejo-me um pouco como um marginal. Sou um marginal e não me sinto mal por isso. Já houve quem dissesse que eu era um escritor maldito. Não. Não sou nada disso. Fico à margem da história das principais festividades literárias, é certo. E claro que esse não é um lugar muito agradável porque cai lá muito pó e muito lixo... Mas, de facto, não estou na estrada brilhante dos triunfadores, esses que vão por aí fora. Eu deixo-os ir. E rio-me muitas vezes das figuras que eles fazem...
P. — Acha que há corredores profissionais?
R. — Ah, sim...Literatura de consumo, literatura que se esquece logo. São alguns, como parte da nova literatura norte-americana, pelo menos entre os mais jovens. Eu li o Mclnerney, As Mil Luzes de Nova lorque e não me pareceu mau de todo. Mas esses livros são medíocres, uma espécie de literatura de maus costumes...
P. — Mas, sente-se isolado na literatura portuguesa contemporânea?
R. — Não sei. E inacreditável, mas eu não sei mesmo. Tenho escrito aquilo que eu penso, o que é uma das formas de praticar o romance. Tenho uma família literária pequena. Mas, repare, já tenho alguma idade. Fui ficando, sabe-se lá até quando a vida mo vai permitir. Mas gosto. Gosto muito.
Entrevista de Francisco José Viegas
Revista Ler – Primavera 1988