Portugueses sem compromisso
Este jornal publicou na sua edição de ontem uma interessante peça sobre o voto dos deputados numa hipotética eleição dos “grandes portugueses”. Escreve a repórter que “não responder foi a forma hábil e prudente de a maioria dos deputados evitar entrar em polémicas” – ou, então, eleger o “povo português” – se bem que a lista dos dez figurantes na final televisiva de ontem tivesse sido razoavelmente votada. “Não responder”, fixem bem. E creio que este “não responder” não teve a ver com o facto de o procedimento ter passado, primeiro, pelo chefe de gabinete de cada grupo parlamentar. Teve a ver com uma orientação geral que ultrapassa em muito o estatuto de cada deputado – é, antes, uma marca da própria sociedade. Ou do modo de ser dessa sociedade.
Ora, por que razão não respondeu a maioria dos deputados a essa pergunta simples e banal? Para não se comprometerem. Está certo que nenhum dos representantes da nação – ao contrário da nação, propriamente dita – escolheria Salazar, pelo menos publicamente. Mas, tirando Salazar e Cunhal, a lista dos restantes oito finalistas é pacífica, parece-me bem escolhida, muito bem indicada, tem nomes para todos os gostos. Escolher qualquer um desses nomes, de D. Afonso Henriques a Fernando Pessoa, de Camões a Aristides Sousa Mendes, de D. João II a Pombal, não significaria cometer um pecado venial nem uma decisão politicamente incorrecta.
Então, por que decidiu a maioria dos deputados, de acordo com a reportagem do JN, não responder à pergunta? Insisto: para não se comprometer. Quase quinhentos anos depois da Inquisição, quarenta anos depois de Salazar, trinta anos depois do 25 de Abril, “não se comprometer” é ainda o melhor – por causa do medo. Por causa do receio em arriscar, em ter uma opinião (mesmo que errada, mesmo que depois se mude), em ser confrontado com outras opiniões.
O que custaria indicar um nome? Pouco. Na pior das hipóteses, o “perigo” residiria em que alguém escolhesse outro nome – e que houvesse um debate, uma pequena polémica. Mas o melhor é “não se comprometer”, não causar ondas, não expor a opinião em público para não correr o risco de ser confrontado com ela; ou, pior, de ser penalizado ou castigado por causa dela.
Evidentemente que a “eleição” do “grande português” não passa de um jogo, e não vem grande mal ao mundo que se cumpra dessa maneira. Um jogo é, aliás, uma coisa bastante séria porque revela os sinais de carácter e as subtilezas culturais dos participantes. Mas o medo de jogar revela muito mais e o retrato que daí se tira não é muito positivo: quarenta anos depois de Salazar, o seu espírito – mais do que a sua memória – continua a pairar sobre os nossos contemporâneos e, juntamente com o dele, há também o pavor da Inquisição, o medo da opinião defendida em público e a necessidade de excluir os contrários. Ou, sobretudo, o medo de pertencer aos contrários.
Portugal precisa não de um mas de vários jogos sobre “os grandes portugueses” – até para dessacralizar um pouco os obscuros labirintos da nossa História. Há argumentos sérios sobre a leviandade deste concurso televisivo, mas as vantagens que até agora dele se tiraram são inegáveis, a começar pelo facto de relembrar que o nosso passado não está apenas povoado nem de luminosos momentos de glória nem de abomináveis descidas aos infernos. Mas isso é o menos.
in Jornal de Notícias – 26 Março 2007
Ora, por que razão não respondeu a maioria dos deputados a essa pergunta simples e banal? Para não se comprometerem. Está certo que nenhum dos representantes da nação – ao contrário da nação, propriamente dita – escolheria Salazar, pelo menos publicamente. Mas, tirando Salazar e Cunhal, a lista dos restantes oito finalistas é pacífica, parece-me bem escolhida, muito bem indicada, tem nomes para todos os gostos. Escolher qualquer um desses nomes, de D. Afonso Henriques a Fernando Pessoa, de Camões a Aristides Sousa Mendes, de D. João II a Pombal, não significaria cometer um pecado venial nem uma decisão politicamente incorrecta.
Então, por que decidiu a maioria dos deputados, de acordo com a reportagem do JN, não responder à pergunta? Insisto: para não se comprometer. Quase quinhentos anos depois da Inquisição, quarenta anos depois de Salazar, trinta anos depois do 25 de Abril, “não se comprometer” é ainda o melhor – por causa do medo. Por causa do receio em arriscar, em ter uma opinião (mesmo que errada, mesmo que depois se mude), em ser confrontado com outras opiniões.
O que custaria indicar um nome? Pouco. Na pior das hipóteses, o “perigo” residiria em que alguém escolhesse outro nome – e que houvesse um debate, uma pequena polémica. Mas o melhor é “não se comprometer”, não causar ondas, não expor a opinião em público para não correr o risco de ser confrontado com ela; ou, pior, de ser penalizado ou castigado por causa dela.
Evidentemente que a “eleição” do “grande português” não passa de um jogo, e não vem grande mal ao mundo que se cumpra dessa maneira. Um jogo é, aliás, uma coisa bastante séria porque revela os sinais de carácter e as subtilezas culturais dos participantes. Mas o medo de jogar revela muito mais e o retrato que daí se tira não é muito positivo: quarenta anos depois de Salazar, o seu espírito – mais do que a sua memória – continua a pairar sobre os nossos contemporâneos e, juntamente com o dele, há também o pavor da Inquisição, o medo da opinião defendida em público e a necessidade de excluir os contrários. Ou, sobretudo, o medo de pertencer aos contrários.
Portugal precisa não de um mas de vários jogos sobre “os grandes portugueses” – até para dessacralizar um pouco os obscuros labirintos da nossa História. Há argumentos sérios sobre a leviandade deste concurso televisivo, mas as vantagens que até agora dele se tiraram são inegáveis, a começar pelo facto de relembrar que o nosso passado não está apenas povoado nem de luminosos momentos de glória nem de abomináveis descidas aos infernos. Mas isso é o menos.
in Jornal de Notícias – 26 Março 2007
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