O maravilhoso país da Ota
A culpa pelo que aconteceu aos 70 trabalhadores portugueses encontrados em Navarra, a viver em condições sub-humanas, explorados por energúmenos e sujeitos a humilhações, não pode ser totalmente assacada às entidades portuguesas do estrangeiro nem à rede consular portuguesa. Evidentemente que devia existir alguma vigilância. Mas a responsabilidade deve ser atribuída, em boa parte, às autoridades portuguesas e nenhuma justificação sobre a “descoordenação” das polícias tem aqui razão de ser. Expliquemos como e porquê.
Segundo os relatos, esses portugueses vêm de chamadas zonas “deprimidas” do Norte do país, com problemas sociais e familiares. Desconhece-se, na generalidade, o que são “problemas sociais e familiares”, mas foi assim que as agências elaboraram a sua tipologia sociológica e psicológica. Acontece que um dos pormenores mais significativos diz respeito à nacionalidade dos angariadores de escravos: dos 17 suspeitos entretanto libertados por ordem judicial, 13 são portugueses.
Para quem pensava que iam longe as histórias de exploração e de humilhação da época de emigração portuguesa em massa para França ou Alemanha, aí está o retrato do que nunca acaba: o retrato mais abjecto da condição humana (escravizar, humilhar e explorar o semelhante), com abundante marca lusitana. Simplesmente, essas redes de angariadores funcionam em plena luz do dia, recrutando desempregados ou indigentes, sem quaisquer escrúpulos e sem grande vigilância policial. A razão de isso acontecer é atribuída, com alguma razão, ao facto de não haver denúncias nem testemunhos de vítimas dessas redes.
Em depoimentos públicos (ouvi bastantes nos últimos dias, na rádio sobretudo), emigrantes ou antigos emigrantes afirmavam aceitar muitas dessas condições humilhantes, colocadas pelos angariadores, em nome da família ou dos filhos. Compreende-se o drama, a infelicidade e a coragem da maior parte deles, dispostos a sacrifícios enormes e até trágicos para garantir a sobrevivência das suas famílias.
Segundo percebi, os trabalhadores libertados pela Guardia Civil espanhola já estão a trabalhar em outras explorações agrícolas de Navarra e recusam-se a falar com a imprensa ou a contar “toda a verdade” às autoridades. Trata-se de um muro de silêncio, de um pacto de silêncio para proteger não apenas a ilegalidade mas, dramaticamente, a dolorosa busca de subsistência nas quintas espanholas da região.
O maravilhoso país da Ota e das “opas” produz acontecimentos destes. Não, não se trata, como ouvi dizer nestes dias, de uma má imagem de Portugal no estrangeiro. O espectáculo não é degradante por ter ocorrido no estrangeiro. O acontecimento é degradante por estarem em causa emigrantes, porque as polícias foram incapazes de impedir esse tráfico humano e porque os algozes são portugueses.
Segundo parece, a construção do novo aeroporto aumentará a oferta de emprego e talvez possa albergar muitos desses trabalhadores que procuram garantir a sobrevivência das suas famílias sujeitando-se a humilhações e a condições desumanas. Eu prefiro, apenas, que os emigrantes emigrem sem terem de passar por este calvário – e que as polícias actuem para impedir que os energúmenos possam ter negócio, e sejam presos, e condenados. Portugal não oferece tantas garantias como isso.
P.S. - A Dra. Maria Manuel Leitão Marques, cujo trabalho na Unidade de Coordenação da Modernização Administrativa merece largos elogios, respondeu neste jornal às minhas dúvidas sobre o Cartão Único. Na verdade, tal como a Dra. Maria Manuel assinala, a nossa liberdade e a nossa privacidade dependem muito “de como a informação é guardada, do direito que temos de conhecer os nossos dados e para que são utilizados”. Pois aí está a questão essencial.
in Jornal de Notícias – 19 Março 2007
Segundo os relatos, esses portugueses vêm de chamadas zonas “deprimidas” do Norte do país, com problemas sociais e familiares. Desconhece-se, na generalidade, o que são “problemas sociais e familiares”, mas foi assim que as agências elaboraram a sua tipologia sociológica e psicológica. Acontece que um dos pormenores mais significativos diz respeito à nacionalidade dos angariadores de escravos: dos 17 suspeitos entretanto libertados por ordem judicial, 13 são portugueses.
Para quem pensava que iam longe as histórias de exploração e de humilhação da época de emigração portuguesa em massa para França ou Alemanha, aí está o retrato do que nunca acaba: o retrato mais abjecto da condição humana (escravizar, humilhar e explorar o semelhante), com abundante marca lusitana. Simplesmente, essas redes de angariadores funcionam em plena luz do dia, recrutando desempregados ou indigentes, sem quaisquer escrúpulos e sem grande vigilância policial. A razão de isso acontecer é atribuída, com alguma razão, ao facto de não haver denúncias nem testemunhos de vítimas dessas redes.
Em depoimentos públicos (ouvi bastantes nos últimos dias, na rádio sobretudo), emigrantes ou antigos emigrantes afirmavam aceitar muitas dessas condições humilhantes, colocadas pelos angariadores, em nome da família ou dos filhos. Compreende-se o drama, a infelicidade e a coragem da maior parte deles, dispostos a sacrifícios enormes e até trágicos para garantir a sobrevivência das suas famílias.
Segundo percebi, os trabalhadores libertados pela Guardia Civil espanhola já estão a trabalhar em outras explorações agrícolas de Navarra e recusam-se a falar com a imprensa ou a contar “toda a verdade” às autoridades. Trata-se de um muro de silêncio, de um pacto de silêncio para proteger não apenas a ilegalidade mas, dramaticamente, a dolorosa busca de subsistência nas quintas espanholas da região.
O maravilhoso país da Ota e das “opas” produz acontecimentos destes. Não, não se trata, como ouvi dizer nestes dias, de uma má imagem de Portugal no estrangeiro. O espectáculo não é degradante por ter ocorrido no estrangeiro. O acontecimento é degradante por estarem em causa emigrantes, porque as polícias foram incapazes de impedir esse tráfico humano e porque os algozes são portugueses.
Segundo parece, a construção do novo aeroporto aumentará a oferta de emprego e talvez possa albergar muitos desses trabalhadores que procuram garantir a sobrevivência das suas famílias sujeitando-se a humilhações e a condições desumanas. Eu prefiro, apenas, que os emigrantes emigrem sem terem de passar por este calvário – e que as polícias actuem para impedir que os energúmenos possam ter negócio, e sejam presos, e condenados. Portugal não oferece tantas garantias como isso.
P.S. - A Dra. Maria Manuel Leitão Marques, cujo trabalho na Unidade de Coordenação da Modernização Administrativa merece largos elogios, respondeu neste jornal às minhas dúvidas sobre o Cartão Único. Na verdade, tal como a Dra. Maria Manuel assinala, a nossa liberdade e a nossa privacidade dependem muito “de como a informação é guardada, do direito que temos de conhecer os nossos dados e para que são utilizados”. Pois aí está a questão essencial.
in Jornal de Notícias – 19 Março 2007
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