março 17, 2007

Alentejo em Alvalade


Num bairro lisboeta, um restaurante de ressonâncias alentejanas pode ser uma (boa) surpresa.

Há várias teorias sobre como deve ser uma crónica de restaurante; e, inclusive, discussões sobre se um colunista "de restaurante" pode ser considerado "crítico gastronómico", ou sobre se um crítico gastro­nómico pode, até, escrever sobre restaurantes. Nero Wolfe, o detective nova-iorquino criado por Rex Stout, ia uma vez por mês ao Rusterman, dirigi­do pelo seu bom amigo Marko Vukcik. Era ali que Wolfe se sentava a uma das mesas do piso superior, saboreando pratos que ele próprio, Marko e até Fritz Brenner (cozinheiro privativo do detective, na sua casa da Rua 35), tinha discutido previamente. Nenhumas ovas de sável se comparavam às de Fritz, mas as do restaurante Rusterman aproximavam-se, tirando a quantidade de chalotas apresentadas no caldo.

Marko seria depois assassinado no romance 'A Montanha Negra', um dos relatos mais apaixonantes de todas as aventuras de Wolfe - e obrigá-lo-ia a viajar até Montenegro, sua terra natal, entre­tanto convertida em parte da Jugoslávia, paredes meias com a Albânia; foi aí que Wolfe e Archie Goodwin encontraram o assassino de Marko. Mas, pelo meio, uma grande peregrinação gastronómica leva o detective a cozinhar massa em Bari, a provar cordeiro em Podgoritza e a passar fome nas mon­tanhas. Tão pouca arte? Tão pouca arte. Mas a sim­plicidade da cozinha não significa a sua menorida­de; até porque uma coisa é a cozinha e outra a gas­tronomia, propriamente dita, que inclui colecções de arte culinária brutais ou barrocas, sinfonias majestosas que arrastam consigo séculos de criati­vidade e de imaginação prodigiosas. A simplicida­de não é um grande monumento artístico - mas pode constituir uma reparação gastronómica notá­vel: um pratinho de feijão cozinhado com azeite e legumes, uns espargos salteados com ovos, uns cogumelos massajados pela gema de um ovo, que poderei dizer-vos de uma lista interminável?, podem ser elementos de prazer e de conforto sem que, por isso, lhes seja erigido um monumento que ateste a sua qualidade artística.

O Salsa & Coentros, no bairro de Alvalade, em Lisboa, oscila entre a simplicidade e os momentos de arte fatal que deixam os estômagos a desvairar-se. Coincidências entre o arroz de lebre, o 'carpaccio' de bacalhau, a sopa de cação, os filetes de garoupa com arroz de tomate e pimentos ou a empada de perdiz. Há aqui coisas sublimes: a empada de perdiz é uma delas, mas o pódio pode ser encimado pelo arroz de lebre, uma experiência de cabidela que aconselho vivamente aos aprecia­dores, e até pode despontar o pratinho de migas de batata e ovo, resumo dessa miraculosa simplici­dade caseira, doméstica, familiar, transformada em apelo exótico. E é. Tudo isto tem evidentes res­sonâncias alentejanas, de que desde já advirto, a começar pelas variedades de miguinhas ou de pratos onde entra o porco preto (que me parece popularizado para além do desejável, mas enfim) ou ainda de saladinhas que servem de entrada (favas com azeite...).

Portanto, retomando o fio da crónica, o que deve ela conter: precisamente, um reparo ao que se comeu. Ora, eu não tenho reparos a fazer ao arroz de lebre em cabidela, muito suculento e com o grão no ponto, com um caldo muito apetitoso. Nem à empada de perdiz, com a massa devidamente cora­da, o recheio magnífico, sem arrebiques, em que eram evidentes os pedaços da ave, com a qual – sejamos sinceros – se faz excelente literatura e gastronomia sem muitos ademanes porque perdiz é perdiz, e sendo boa a perdiz bom será o molho vilão em que ela voa, e boa será a empada em que ela se desfolha.

A lista de sobremesas é tradicional e alentejana – mas eu pelo-me pelo requeijão com mel, porque tenho direito a avarias letais e a pecados que me levam a esperar o café. Assim fiz: esperei o café com a suspeita de que estava numa casa onde se comia muito, muito bem. Sabe-se (já o escrevi) que não simpatizo com excesso de coentros para provar a marca alentejana; mas aqui o nome vai bem, em nome do equilíbrio geral.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 94
Vinhos brancos: 40
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 12

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil na zona, mas com parque próximo
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Sim
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 28 euros

SALSA & COENTROS
R. Coronel Marques Leitão, 12
Lisboa (Alvalade)
Tel.: 21 841 0990
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 17 Março 2007

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