Viajar pelo Sul
A nossa ideia do Sul é composta, essencialmente, por imagens de praias luminosas e "azuladas", uma espécie de antecâmara fraternal do paraíso conforme o concebiam os navegadores do século XVI e os utopistas do nosso tempo - uma terra sem pecado, para termos presente a obra de Gauguin. Esses lugares sem pecado não existem, como se sabe, mas convém que os imaginemos, para que não se perca a nossa capacidade de sonhar.
Viajar pelo Sul é um dos grandes sonhos admitidos aos europeus - do outro lado do mundo existiria um pouco da felicidade que a vida quotidiana nos nega aqui. Não poderiam dizê-lo os tripulantes do Bounty, o navio da Armada Real Britânica que partira de Spithead a 23 de Dezembro de 1787 com destino ao Taiti. A história é conhecida – a revolta na Bounty — e deu origem ao filme com Marlon Brando, rodado em Tetiaroa, um atol das "ilhas do vento". Os sobreviventes do caso refugiaram-se nas ilhas Pitcairn, um destino invulgar hoje em dia. Os dados disponíveis são interessantes: a ilha principal é habitada por cerca de 50 pessoas (na verdade descendentes dos marinheiros revoltados e dos polinésios que os acompanharam) e a maior parte dos seus naturais emigrou para a Nova Zelândia, regressando periodicamente para visitar aquele território de origem vulcânica com uma língua de areia que faria as delícias de qualquer utopista do século XVIII. A ideia do "bom selvagem" não seria, no entanto, confirmada nos tempos recentes — cerca de um quarto da população masculina foi julgada (e boa parte condenada) por abusos sexuais, em 2004.
Seja como for, há na história das Pitcairn um pormenor ao qual deveríamos estar mais atentos: o da sua descoberta, em 1606, por um navegador português, nascido em Évora em 1565, Pedro Fernandes de Queirós. Queirós não consta no Olimpo dos nossos Descobrimentos e a razão essencial deve prender-se com o facto de ter trabalhado fundamentalmente para a coroa espanhola. A própria descoberta das Pitcairn ocorreu na etapa final de uma viagem que se iniciou no Peru, de onde partiu em 1605 - no ano anterior recebera a incumbência, por parte de Filipe III (Filipe II de Portugal) de coordenar a exploração de todo o Pacífico. A 21 de Dezembro de 1605, Queirós partiu com três embarcações (San Pedro y Paulo, San Pedro e Los Tres Reyes) para descobrir o que houvesse a descobrir. Um mês depois chegaria lá, às Pitcairn; quase outro mês passado e descansaria por algum tempo no Taiti, outra descoberta. A 25 de Abril de 1606, seis anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral à costa baiana, o navegador de Évora chegou ao território que James Cook, muitos anos depois (em 1773) chamaria Novas Hébridas - ou seja, é um português que descobre aquilo que hoje conhecemos como Vanuatu. Queirós acreditava que essas ilhas eram parte de um continente mais vasto, a mítica Terra Australis (a Terra Australis Incógnita, roubada a Aristóteles), outro dos grandes mitos das navegações do Sul. Designou esse continente como Austrália del Espiritu Santo, nome retomado pelo próprio Thomas Cook.
A chegada do português às Pitcairn, em Janeiro de 1606, foi o primeiro passo dessa viagem memorável que o rei de Espanha e de Portugal não deixou perpetuar. O eborense regressou a Acapulco, no Norte, em Outubro desse ano, e partiu de seguida para Madrid a fim de pedir ao rei que o deixasse colonizar esses territórios. Mas Filipe III já tinha problemas que bastassem na Europa e na América.
Quando oiço falar de Vanuatu, por exemplo, ou das Pitcairn (a ilha dos revoltados do Bounty), tento imaginar Pedro Fernandes de Queirós - e não consigo. Eis como viajar pelo Sul é também viajar pelo esquecimento. Já conhecia Pedro Fernandes de Queirós?
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2007
Viajar pelo Sul é um dos grandes sonhos admitidos aos europeus - do outro lado do mundo existiria um pouco da felicidade que a vida quotidiana nos nega aqui. Não poderiam dizê-lo os tripulantes do Bounty, o navio da Armada Real Britânica que partira de Spithead a 23 de Dezembro de 1787 com destino ao Taiti. A história é conhecida – a revolta na Bounty — e deu origem ao filme com Marlon Brando, rodado em Tetiaroa, um atol das "ilhas do vento". Os sobreviventes do caso refugiaram-se nas ilhas Pitcairn, um destino invulgar hoje em dia. Os dados disponíveis são interessantes: a ilha principal é habitada por cerca de 50 pessoas (na verdade descendentes dos marinheiros revoltados e dos polinésios que os acompanharam) e a maior parte dos seus naturais emigrou para a Nova Zelândia, regressando periodicamente para visitar aquele território de origem vulcânica com uma língua de areia que faria as delícias de qualquer utopista do século XVIII. A ideia do "bom selvagem" não seria, no entanto, confirmada nos tempos recentes — cerca de um quarto da população masculina foi julgada (e boa parte condenada) por abusos sexuais, em 2004.
Seja como for, há na história das Pitcairn um pormenor ao qual deveríamos estar mais atentos: o da sua descoberta, em 1606, por um navegador português, nascido em Évora em 1565, Pedro Fernandes de Queirós. Queirós não consta no Olimpo dos nossos Descobrimentos e a razão essencial deve prender-se com o facto de ter trabalhado fundamentalmente para a coroa espanhola. A própria descoberta das Pitcairn ocorreu na etapa final de uma viagem que se iniciou no Peru, de onde partiu em 1605 - no ano anterior recebera a incumbência, por parte de Filipe III (Filipe II de Portugal) de coordenar a exploração de todo o Pacífico. A 21 de Dezembro de 1605, Queirós partiu com três embarcações (San Pedro y Paulo, San Pedro e Los Tres Reyes) para descobrir o que houvesse a descobrir. Um mês depois chegaria lá, às Pitcairn; quase outro mês passado e descansaria por algum tempo no Taiti, outra descoberta. A 25 de Abril de 1606, seis anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral à costa baiana, o navegador de Évora chegou ao território que James Cook, muitos anos depois (em 1773) chamaria Novas Hébridas - ou seja, é um português que descobre aquilo que hoje conhecemos como Vanuatu. Queirós acreditava que essas ilhas eram parte de um continente mais vasto, a mítica Terra Australis (a Terra Australis Incógnita, roubada a Aristóteles), outro dos grandes mitos das navegações do Sul. Designou esse continente como Austrália del Espiritu Santo, nome retomado pelo próprio Thomas Cook.
A chegada do português às Pitcairn, em Janeiro de 1606, foi o primeiro passo dessa viagem memorável que o rei de Espanha e de Portugal não deixou perpetuar. O eborense regressou a Acapulco, no Norte, em Outubro desse ano, e partiu de seguida para Madrid a fim de pedir ao rei que o deixasse colonizar esses territórios. Mas Filipe III já tinha problemas que bastassem na Europa e na América.
Quando oiço falar de Vanuatu, por exemplo, ou das Pitcairn (a ilha dos revoltados do Bounty), tento imaginar Pedro Fernandes de Queirós - e não consigo. Eis como viajar pelo Sul é também viajar pelo esquecimento. Já conhecia Pedro Fernandes de Queirós?
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2007
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