março 21, 2008

Palco das palavras


Depois dos 'milagres' na Casa Fernando Pessoa, onde, malgrado o magro orçamento, conseguiu manter uma programação dinâmica quase graciosa, Francisco José Viegas, o jornalista, escritor, andarilho, gourmet, radialista, bloguista, poeta (aqui, de mão rara e feliz), literato omnívoro e dos mais fecundos promotores culturais, retorna à «Ler» «para fazer uma revista para os tempos que correm», isto é, saudáveis para a edição. Uma conversa, justamente, sobre estes tempos de hoje.

Quais as razões que a razão conheceu para deixar a Casa Fernan­do Pessoa?
Razões simples, com cer­teza, e nem vale a pena – como geralmente se faz — alimentar teorias conspirativas. Foi uma proposta do Círculo de Leitores para regressar e retomar a Revista «Ler». É um projecto ao qual estive ligado durante catorze anos, sinto-me muito ligado a ele ainda hoje, e achei a proposta muito convincente e honesta. Hoje em dia há muitas propostas convincentes e fascinantes mas poucas se­rão honestas. Honestas, francas e amáveis.

Sai com uma impressão negativa do funcionalismo público e da gestão autárquica?
Da forma de funcionamento das autarquias, sim. Do funcionalismo, não. Pelo contrário. A minha equipa, que era toda de funcionários públicos, era fabulosa, de gente empenhada e muito entusiástica. As pessoas precisam de apoio, de serem ouvidas, de serem chamadas à elaboração de projectos, de participar. Foi isso que se fez na Casa Fernando Pessoa, e acho que se conseguiu. O que foi um bálsamo, no meio das dificuldades naturais com que se debate a Câmara de Lisboa...

Ainda assim, o Francisco conseguiu ter uma programação regular sem dinheiro...
Porque conseguimos um bom espírito de equipa, porque houve boa-vontade de muita gente e porque nem tudo se consegue com dinheiro. Dinheiro não é tudo; é preciso entusiasmo, criatividade e abertura de espírito. Por outro lado, estar na Casa Fernando Pessoa tem de ser encarado como "serviço público" - eu sempre o disse. A Inês Pedrosa, que dirige hoje a Casa, é uma pessoa com esse perfil e acho que vai fazer um bom trabalho.

Esta passagem da «Ler» a mensal é um indício feliz da popularidade do objecto-cultura ou uma opção de risco?
Ambas as coisas. É um risco, naturalmente. Mas o mercado mudou muito nos últimos cinco ou seis anos, e neste último ano sobretudo, e precisa de uma revista como a «Ler». Pelo menos, como a «Ler» que vamos publicar.

Haverá concorrência directa com publicações e suplementos culturais ou vão manter os anteriores conteúdos para elites?

Vamos fazer uma «Ler» para os tempos que correm. Não temos problema com a concorrência, porque acho que há espaço para todos, para mais publicações até.

Que se passou realmente na sua chefia de edição fracassada na ASA? Foi vítima do fenómeno canibal das editoras?
Não. Foi um projecto que teve a sua história e que precisa de mais tempo para se desenvolver, para crescer, talvez de outra maneira, com outras condições. Eu nem sempre acerto, mas acho que tenho a virtude de reconhecer rapidamente os erros.

Esta aparente opulência do meio editorial encobre a realidade penosa do que é a cultura inculta em Portugal?
Às vezes penso isso, mas depois comparo os nossos dados com os da edição estrangeira, e verifico que nos estamos a aproximar bastante de alguns níveis de qualidade. O problema é o da tradição, o das elites, o dos hábitos. Quando chegamos à Feira de Frankfurt vemos que os políticos vão lá. Os políticos, os ricos, o star system brasileiro frequentam a FLIP de Paraty ou o festival de Ouro Preto. As feiras de Barcelona recebem visitas da população inteira e das elites catalãs. Em Portugal é muito raro isso acontecer. Temos falta de exemplos vindos do alto. Isto (isto, o país) às vezes é um desconsolo. Que livros lêem os deputados? Como se formou a classe dirigente? Que gostos eles possuem e divulgam? Interessam-se por música (não falo de ir a um espectáculo num casino ou uma coisa pop, falo mesmo de música)? Duvido muito. Se há culpas a atribuir, elas
recaem nessas pequenas elites, promovidas como figuras de televisão ou da imprensa cor-de-rosa, mas que não deram nada ao país, não contribuíram com uma ideia sobre a nossa vida cultural. É uma pena.

Continua a ser válida a imagem de disfunção cultural do português de cultura média?
O português de cultura média é uma personagem interessante e capaz de algum esforço. Ia à Festa da Música, interessa-se pêlos livros que saem, preocupa-se com o estado de degradação do ensino humanístico e científico em Portugal, vai ao cinema... Eu acho que teremos de reabilitar essa imagem do "português de cultura média", as pequenas e médias burguesias com algum interesse pelas letras e pelas artes. No final do século XIX, o português de cultura média sabia línguas, lia os clássicos, ia ao teatro, lia a imprensa. A democracia popularizou a indigência. Volto aos exemplos dos políticos: já reparou como são os seus discursos? Já comparou o grau de instrução efectiva dos políticos portugueses do século XIX com os de hoje? Acho que há uma diferença abissal. Esta gente, quando envelhecer, não vai escrever as suas memórias, pela simples razão de que não sabe escrever... Há excepções, que são saborosas, naturalmente, mas a média é muito fraquinha. E há políticos de uma cultura notável, como o Medeiros Ferreira, o Mota Amaral... E uma nova geração, claro, tanto à direita como à esquerda...

Como se explica, por exemplo, o paradoxo do cancelamento da Festa da Música quando terá sido dos maiores fenómenos culturais do pós-25 de Abril (a Festa do Avante não conta)?
Não sei, mas foi uma pena. A Festa da Música era um momento de beleza pura.

Acha que foi uma complacência administrativa com o todo-poderoso comendador Berardo, sendo esta ideia do incómodo Dr. Mega Ferreira?
Não faço a mínima ideia.

Enquanto raça, o medo é o nosso pior defeito genético (a par da inveja)?
É bem capaz de ser. O medo, sim, no sentido em que o respeitinho nos impede de afrontar, de dizer o que pensamos, de entrarmos no debate...

Já lhe contaram a anedota do pescador indiano de caranguejos portugueses? [O homem estava a pescar na praia de Anjuna, Goa, e punha os caranguejos num balde sem tampa. Quando passou alguém e disse: «Ó homem, tape o balde senão os caranguejos fogem», ele respondeu: «Não há problema, são caranguejos portugueses. Quando um estiver a chegar lá acima, vem outro e puxa-lhe as patas»]. Há muito de verdade nisto?
Bastante. Mas temos de procurar as excepções. Temos sempre de procurar as excepções, senão entramos em depressão. Eu não sou um optimista - sou um céptico que acredita vagamente. Fico orgulhoso quando um português consegue fazer qualquer coisa que o distingue. Fico orgulhoso pelo Gonçalo M.Tavares, fico muito orgulhoso pelo sucesso do José Eduardo Agualusa (que é angolano, eu sei), fico orgulhoso com o bom trabalho reconhecido. Fico muito orgulhoso com o trabalho do Pedro Mexia, da Dulce Cardoso... Fico muito orgulhoso com os emigrantes que tiveram êxito, com os portugueses que são felizes por terem trabalhado. Mas esse é um hábito portuga, sim. Sabe porquê? Porque há demasiada gente preguiçosa, que vive na sombra do trabalho dos outros e explora o mérito dos outros. Esses nomes que citei, os do Pedro Mexia, a Dulce, o Gonçalo, o Zé Eduardo, por aí fora, são pessoas que se esforçaram e que trabalharam muito, que merecem o nosso respeito até só por isso. As pessoas invejam tudo. Até invejam o êxito dos livros da Margarida Rebelo Pinto, mesmo sem terem lido uma linha do que ela escreveu. Acho graça à Margarida, ao escândalo que ela provoca, àquele ar de tempestade que leva para onde vai...

Tem ideia de um livro recente que tenha mexido com as consciências (o ensaio do José Gil não conta)?
Vários. Olhe, a autobiografia da Maria Filomena Mónica, que afrontou o provincianismo português, a pequena moral. Ela foi muito corajosa, pôs muita gente a pensar nas suas experiências de vida. Veja o caso das memórias do Raul Miguel Rosado Fernandes, um personagem fantástico, sempre detestado pelas pequenas burocracias da esquerda e da direita, um cavalheiro que viveu intensamente. Mas não sei se mexeram com as consciências, isso não sei. O livro do José Gil é um retrato do medo banal, que é aquele que leva os portugueses a serem invejosos, medrosos e caricatos.

Leu «A Ponte Submersa», do Ma­nuel da Silva Ramos?
Li. O Manuel é um tipo com coragem. Este ano vai ser publicado de novo Os «Três Seios de Novélia», que era o anúncio de um tipo especial de narrativa em finais dos anos sessenta.

O Saramago dos últimos anos perdeu o viço?
Não faço a mínima ideia. Para mim, basta-me ele ter escrito o «Memorial do Convento», o «Manual de Pintura e Caligrafia» e «O Ano da Morte de Ricardo Reis».

E o Lobo Antunes, ainda anda a es­crever o grande livro-terapia?
Também não faço ideia. Ele é o autor do «Manual dos Inquisidores», um grande livro. E é um cronista exemplar, um género em que temos pouca gente. Gosto dele, gosto daquele ar melancólico, que é muito profissional.

Quando este (LA) diz que é o maior escritor português (vivo) é para ser levado a sério?
É. Se calhar é o que ele pensa.

Concorda com o Lobo Antunes quando este diz que a maioria dos «romances» que se publicam em Portugal são abjectos e intrinsecamente desonestos?
Não fiz as contas. Há muitos romances que não me interessam absolutamente nada e paro a leitura a meio, são uma chatice. Há outros que gosto de ler. Mas nem todos têm de ser geniais. Nem tudo o que lemos tem de ser comparável a Camilo.

Ainda é actual a frase do ilustre vate Camilo quando este dizia que «os portugueses não se ajeitam com o romance»?
Acho que há uma herança confessional na ficção que é capaz de atrapalhar um pouco, sim. Mas o José Cardoso Pires não tem nada a ver com isso, nem o Nuno Bragança, a Maria Velho da Costa, o Mário de Carvalho, a Hélia Correia... Sim, o Mário de Carvalho é um dos nossos melhores escritores. «Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde» é uma obra-prima.

José Luís Peixoto é um exemplar honroso da nova geração de escritores?
É. E eu gosto que ele tenha sucesso. Ele é um tipo muito profissional, muito atento, sério naquilo que faz. Com uma dedicação extraordinária à literatura, ou ao seu trabalho. Isso acho comovente.

E o Senhor Gonçalo M.Tavares: entra na categoria dos génios ou é apenas um metro-criador, um rei em terra de manetas?
É o Gonçalo. Puramente, é o Gonçalo, o que já não é pouco. As pessoas hoje dizem: ah, ele descobriu uma receita e tal... E depois? O que fizeram essas pessoas de tão original para se porem em bicos de pés e criticarem o Gonçalo na base da pura inveja? Que ele é um escritor obsessivo? Sim, e depois? É um coleccionador de obsessões, como diria o Herberto Helder, e isso é bom. Tenho uma grande ternura pelo Gonçalo, como pessoa, acho que é um tipo muito simpático, e alguns dos seus livros são muito, muito bons. Têm inveja dele, da sua capacidade de trabalho? Puta que pariu. Trabalhem, esforcem-se, passem noites em branco.

O Francisco leva a Literatura a sério, como ofício, ou é apenas um executante lúdico?
Sou um profissional. Conto histórias nos meus livros. É esse o meu trabalho. Escrevo.

Lisonjeia-o chamarem-lhe o Montálban português?
Muito. Gostava muito do Manolo, que era um homem culto, livre e trabalhador.

Qual foi a crítica mais bem metida que lhe fizeram?
Bem metida, não sei, mas nunca a esqueci. Um dia perguntaram ao Vicente Jorge Silva que livro ele tinha abandonado a meio. Ele disse um dos meus. Ele pensou que eu tinha ficado melindrado e acho que me evitou por isso. Mas até lhe agradeço, porque às vezes precisamos de levar para trás. Tem efeitos benéficos para o carácter.

E a mais injusta e traiçoeira?
Deve ter havido, mas não me lembro e estou a ser completamente sincero.

Tem inimigos (e agradece-lhes por o ajudarem na carreira)?
Tenho inimigos, claro que sim. Mas não me ajudaram.

Nunca teve ambições políticas e estadistas?
Não. Dar-me-ia mal com o papel. Há gente mais talhada, gente mais disciplinada. Para isso é preciso gente disciplinada, muito rigorosa, muito fria. Eu não sou disciplinado, frequentemente admito que não tenho razão, não teria paciência para me levantar cedo todos os dias.

Acha esse território do incurável?
Não. Devia ser um território nobre, respeitado e honrado. Infelizmente, faltam-nos pessoas decentes. Temos ambiciosos, furões, desenrascados, geniais, etc. Mas precisamos de gente decente na política. Não é pedir muito. Gente decente. Damo-nos mal com isso. Gostamos muito de pantomineiros na política.

A passagem pela Grande Reportagem também lhe criou embaraços públicos como a Miguel Sousa Tavares, que por cada editorial fazia um novo inimigo?
Também ganhei alguns inimigos, sim, mas o Miguel tinha o seu próprio estilo...

Como se explica o fecho da GR (com morte lenta) quando era uma das publicações mais acarinhadas (e rentáveis)?
Pergunte à PT. Sempre achei que era um erro passar a revista a semanal (e saí na altura), mas a teimosia é de quem pode...

Leu a crónica do MST no «Expresso» passado? Revê o país naquela catástrofe?
Vejo alguma catástrofe, sim. Ao contrário do que pensa muita opinião satisfeitinha, que anda a pensar nos empregos do governo e na simpatia pelo poder, acho que os retratos das ruínas e das catástrofes têm um efeito positivo sobre nós. Essas vozes são úteis e importantes num momento em que anda tudo satisfeito: o governo, os editores, os políticos, os futebolistas. Precisamos de retratos feios do país, para que possamos mudar as coisas.

E leu o MST romancista? Apreciou?
Li. O Miguel tem um talento inato, que é o de contar histórias, o de as contar muito bem, o de escrever com velocidade, com ritmo. Isso é agradável.

Reconhece-lhe parecenças com o Raul Brandão (e vagamente um Eça tardio), como disse o Vasco Graça Moura na apresentação de «Rio das Flores» ou essa comparação é uma boutade?
Não faço ideia. Mas não vejo Raul Brandão lá.

Precisamos de um motim, uns O'Neill, uns Zeca Afonso, uns Pachecos (Luizes) para agitar a barca?
Vamos dar tempo ao tempo. Se calhar nós havemos de ser capazes de agitar alguma coisa. Não com aquele brilho do O'Neill, mas enfim, alguma coisa se há-de arranjar. Eu acho, volto a repetir, que precisamos de gente decente. De economistas decentes, de professores decentes, de arquitectos decentes, de gente normal que acredite na importância e no valor do que faz. E que sejam atrevidos.

Acha que a sua geração fracassou?
Não me parece. Ainda é cedo para avaliar - mas não sei bem quem é a minha geração porque me sinto mais perto dos mais novos do que eu. Mas a geração da blogosfera, esta que está aí, tem gente notável, que escreve bem, que tem ideias, que perdeu o medo. Espero que não se deixe instrumentalizar pela política imediata, porque há lá gente interessante e atrevida.

Entrevista de Tiago Salazar
in Revista Magazine Artes, n.º60 – Março 2008


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