A hipocrisia que bate à porta
Vamos ao problema, para abreviar. O senhor director-geral da Saúde, Francisco George, ameaçou demitir-se caso “a lei do tabaco”, que entrará em vigor no próximo dia 1 de Janeiro, não seja levada à prática. A ideia é nobre, mas o processo é questionável. Trata-se de uma espécie de chantagem emocional: ou cumprem a lei ou o director-geral da Saúde vai imolar-se, não pelo fogo, mas retirando-se do cargo que tão bem desempenhou até agora.
Digamos que eu aprecio bastante a figura do Dr. Francisco George: ao contrário de muitos dos seus pares, que têm uma tendência evangelizadora e se mostram arreliados com o mundo, o nosso director-geral da Saúde inspira confiança, com a sua barba mal aparada, o seu ar ligeiramente apopléctico, de quem tem uma boa relação com a mesa ou o riso, ou o seu papel desdramatizador várias vezes repetido na televisão.
O meu caso é este: como fumador, apoio a lei. Já a cumpro há muito. Acho, aliás, que esta lei não faz muito mais do que repetir pressupostos e princípios já presentes noutras leis anteriores sobre o fumo em espaço público. Eu também espero que a lei se cumpra e que haja bom-senso e liberdade de escolha.
Acontece que a ameaça de demissão de Francisco George parece bastante – desculpe-me, sr. Director-Geral da Saúde – despropositada. Não sei se leu a reportagem, publicada pelo semanário “Expresso” de há duas semanas, sobre a vida nocturna dos adolescentes, ou seja, de crianças com 12, 13 ou 14 anos (a idade da adolescência baixou um tanto, como se vê). Nada que não saibamos. Simplesmente, escondemos. Muito conveniente esconder esse retrato de rapazes e raparigas de 12, 13 e 14 anos que entram em coma alcoólico, que ingerem “shots” e uísques, que fumam charros, que passam fora de casa as madrugadas até às sete ou oito da manhã. Mas é hipócrita esse silêncio.
Nas semanas mais recentes toda a gente se preocupou muito com a “noite do Porto” e com a violência da “noite de Lisboa”. Mas essa violência é que deveria levar os vários responsáveis públicos a demitirem-se. Quem passa pela rua das Janelas Verdes por volta das três da madrugada vê o espectáculo de crianças alcoolizadas, caídas no chão, embrulhadas em vómito. O Dr. Francisco George deveria demitir-se, isso sim, caso não consiga impedir os “empresários da noite” de vender “shots” a um euro às crianças dessas idades. Isso sim, seria heróico e chamaria a atenção para o fenómeno do alcoolismo nessas idades. São bares e discotecas com polícias à porta para proteger esse negócio fora-da-lei, mas não para prender os proprietários de bares que toda a gente conhece e que “empregam” crianças de 13, 14 e 15 anos como “relações públicas”.
O director-geral da Saúde deveria demitir-se caso não consiga impedir o negócio do álcool vendido a crianças no Saldanha, no Bairro Alto ou em Santos (estou a falar apenas de Lisboa), anunciado em plena rua, perante a indiferença da ASAE e das autoridades que gostam de punir o que é fácil punir, mas que deviam ter dificuldade em olhar-se ao espelho, se tivessem um nadinha de pudor e de brio. Isso sim, seria heroísmo, e eu estaria aqui para aplaudi-lo.
O Dr. Francisco George não acha que isto é um problema de saúde pública? Eu pagaria uma multa se fumasse num restaurante; mas nada vai acontecer aos criminosos que vendem álcool a esses adolescentes, aos traficantes de “pastilhas” e “bolota” ou “pólen” (ah, não conhecem?) nas escolas e nesses bares, aos criminosos que aliciam jovens para funções de “relações públicas” em bares onde se sabe que há demasiados casos de coma alcoólico, nem aos fornecedores de ilusões (essas sim, verdadeiramente ilegais) a crianças que entram na noite diante do encolher de ombros da Direcção-Geral de Saúde e das polícias. Isso sim, é uma vergonha.
in Jornal de Notícias – 24 Dezembro 2007
Digamos que eu aprecio bastante a figura do Dr. Francisco George: ao contrário de muitos dos seus pares, que têm uma tendência evangelizadora e se mostram arreliados com o mundo, o nosso director-geral da Saúde inspira confiança, com a sua barba mal aparada, o seu ar ligeiramente apopléctico, de quem tem uma boa relação com a mesa ou o riso, ou o seu papel desdramatizador várias vezes repetido na televisão.
O meu caso é este: como fumador, apoio a lei. Já a cumpro há muito. Acho, aliás, que esta lei não faz muito mais do que repetir pressupostos e princípios já presentes noutras leis anteriores sobre o fumo em espaço público. Eu também espero que a lei se cumpra e que haja bom-senso e liberdade de escolha.
Acontece que a ameaça de demissão de Francisco George parece bastante – desculpe-me, sr. Director-Geral da Saúde – despropositada. Não sei se leu a reportagem, publicada pelo semanário “Expresso” de há duas semanas, sobre a vida nocturna dos adolescentes, ou seja, de crianças com 12, 13 ou 14 anos (a idade da adolescência baixou um tanto, como se vê). Nada que não saibamos. Simplesmente, escondemos. Muito conveniente esconder esse retrato de rapazes e raparigas de 12, 13 e 14 anos que entram em coma alcoólico, que ingerem “shots” e uísques, que fumam charros, que passam fora de casa as madrugadas até às sete ou oito da manhã. Mas é hipócrita esse silêncio.
Nas semanas mais recentes toda a gente se preocupou muito com a “noite do Porto” e com a violência da “noite de Lisboa”. Mas essa violência é que deveria levar os vários responsáveis públicos a demitirem-se. Quem passa pela rua das Janelas Verdes por volta das três da madrugada vê o espectáculo de crianças alcoolizadas, caídas no chão, embrulhadas em vómito. O Dr. Francisco George deveria demitir-se, isso sim, caso não consiga impedir os “empresários da noite” de vender “shots” a um euro às crianças dessas idades. Isso sim, seria heróico e chamaria a atenção para o fenómeno do alcoolismo nessas idades. São bares e discotecas com polícias à porta para proteger esse negócio fora-da-lei, mas não para prender os proprietários de bares que toda a gente conhece e que “empregam” crianças de 13, 14 e 15 anos como “relações públicas”.
O director-geral da Saúde deveria demitir-se caso não consiga impedir o negócio do álcool vendido a crianças no Saldanha, no Bairro Alto ou em Santos (estou a falar apenas de Lisboa), anunciado em plena rua, perante a indiferença da ASAE e das autoridades que gostam de punir o que é fácil punir, mas que deviam ter dificuldade em olhar-se ao espelho, se tivessem um nadinha de pudor e de brio. Isso sim, seria heroísmo, e eu estaria aqui para aplaudi-lo.
O Dr. Francisco George não acha que isto é um problema de saúde pública? Eu pagaria uma multa se fumasse num restaurante; mas nada vai acontecer aos criminosos que vendem álcool a esses adolescentes, aos traficantes de “pastilhas” e “bolota” ou “pólen” (ah, não conhecem?) nas escolas e nesses bares, aos criminosos que aliciam jovens para funções de “relações públicas” em bares onde se sabe que há demasiados casos de coma alcoólico, nem aos fornecedores de ilusões (essas sim, verdadeiramente ilegais) a crianças que entram na noite diante do encolher de ombros da Direcção-Geral de Saúde e das polícias. Isso sim, é uma vergonha.
in Jornal de Notícias – 24 Dezembro 2007
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