Saudades do Brasil
O cronista, quando se lhe fala do Brasil, tem um problema: escreve, escreve, escreve...
Deviam proibir-me de escrever sobre o Brasil, porque uma comoção qualquer toma conta de mim e a idade não perdoa. Desculpem a formulação, mas é assim. A comida brasileira é uma dessas alíneas, uma espécie de pequena explosão que invoca coração, estômago, dedos, papilas, memória, o que quiserem – mas é a conjugação desses factores que deixa ferver a imaginação.
Recentemente, fiz uma incursão pela comida mineira, justamente numa das suas capitais, a vetusta Ouro Preto (se bem que em Tiradentes exista uma das maiores concentrações de excelentes chefes por metro quadrado). Foi um festival absoluto, com o simples frango com quiabos; a monumentalidade do tutu de feijão (que não é apenas paulista) e do feijão tropeiro (com ovo frito sobreposto ao barroco de carnes e legumes); a textura suculenta dos seus ensopados (o de frango ou de aba de costela) e doces fatais. Pessoalmente, provei de tudo: os pratos de boteco no Rio de Janeiro; os excessos novecentístas da culinária paulista; o império de pratinhos baianos de mar e terra, com as suas moquecas, feijões, cozidos, mocotós, seja o que for; a especiosa moqueca capixaba, do Espírito Santo; a cozinha de inspiração portuguesa do Rio Grande do Sul; os peixes do Amazonas, fritos (tambaqui, pirapitinga, aruanã, pirarucu, bicuda, jacundá, traíra, pirarara, ou tucunaré), ou os do Araguaia; as carnes do Sul em fogo de chão, na serra gaúcha, ou os seus galetos "al primo canto"; as farinhas e fusões pernambucanas.
Por isso, quando alguém me diz "esta é a verdadeira cozinha do Brasil", ou "esta é a verdadeira música do Brasil", ou "esta é a verdadeira feijoada brasileira", digamos que tremo de indignação. Não existe Brasil, propriamente dito - mas Brasis, como ficou escrito em parte da literatura portuguesa do século XIX: os Brasis, esse continente de extensões e declives, de chapadas e de planaltos, do pampa às florestas, como escreve o grande Euclydes da Cunha, um dos grandes mestres da nossa língua. Vejam como começa "Os Sertões": "O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior."
E fomos ao Comida de Santo, uma casa histórica de referência para o Brasil e para a comida baiana, a dois passos do Príncipe Real, evocando a memória da paixão brasileira de António José Pinto Coelho, o seu criador nos anos oitenta. E desfilam, então, as moquecas de camarão ou de peixe, fervilhando no seu molho de azeite dendê, os ensopadinhos de camarão e de peixe com leite de coco, o vatapá bem baiano, enlaçado com o bobó de camarão, o virado paulista (com o tutu de feijão, evidentemente), o camarão com catupiry e (ah!, senhores e senhoras!) a mais brutal saudação à cozinha doméstica e histórica dos lares brasileiros, tão gabada por Nelson Rodrigues, o ensopadinho de abóbora com carne de sol (o meu prato brasileiro preferido, se for bem preparado) - além da carne de sol acebolada, da feijoada, do xinxim de galinha ou do picadinho à mineira. Todos estes pratos são, para mim, música celestial – tradicionais, intensos, perfumados, evocativos, triunfais, terminando com uma prova de quindim, de bananada ou de pudim de aipim.
A minha opinião está toldada pela saudade e não é um alto momento do meu julgamento porque, além do mais, aparecem, juntamente com as comidas, lembranças das cervejas locais, da Bohemia Weiss à Baden-Baden, da Schmitt à La Brunette, da Devassa à Eisenbahn e à Cerpa. Infelizmente não se apanham cá.
É preciso dizer que o Comida de Santo não é "um restaurante de comida brasileira", partindo do princípio de que a comida brasileira não existe (em seu lugar, um carrossel de designações: paulista, baiana, gaúcha, mineira, etc.) – mas o seu, digamos, "paradigma", transporta o ideal de uma culinária caseira e intensa, verdadeira, que terá os seus detractores e os seus amadores fiéis. Considerem-me entre os segundos.
À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 47
Vinhos brancos: 16
Vinhos verdes: 6
Portos & Madeiras: 4
Uísques: 14
Aguardentes portuguesas: 10
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: à noite
Preço médio: 25 Euros
COMIDA DE SANTO
Calçada Engenheiro Miguel Pais, 39
1200-172 Lisboa
Tel. 21 396 33 39
in Revista Notícias Sábado – 15 Dezembro 2007
Deviam proibir-me de escrever sobre o Brasil, porque uma comoção qualquer toma conta de mim e a idade não perdoa. Desculpem a formulação, mas é assim. A comida brasileira é uma dessas alíneas, uma espécie de pequena explosão que invoca coração, estômago, dedos, papilas, memória, o que quiserem – mas é a conjugação desses factores que deixa ferver a imaginação.
Recentemente, fiz uma incursão pela comida mineira, justamente numa das suas capitais, a vetusta Ouro Preto (se bem que em Tiradentes exista uma das maiores concentrações de excelentes chefes por metro quadrado). Foi um festival absoluto, com o simples frango com quiabos; a monumentalidade do tutu de feijão (que não é apenas paulista) e do feijão tropeiro (com ovo frito sobreposto ao barroco de carnes e legumes); a textura suculenta dos seus ensopados (o de frango ou de aba de costela) e doces fatais. Pessoalmente, provei de tudo: os pratos de boteco no Rio de Janeiro; os excessos novecentístas da culinária paulista; o império de pratinhos baianos de mar e terra, com as suas moquecas, feijões, cozidos, mocotós, seja o que for; a especiosa moqueca capixaba, do Espírito Santo; a cozinha de inspiração portuguesa do Rio Grande do Sul; os peixes do Amazonas, fritos (tambaqui, pirapitinga, aruanã, pirarucu, bicuda, jacundá, traíra, pirarara, ou tucunaré), ou os do Araguaia; as carnes do Sul em fogo de chão, na serra gaúcha, ou os seus galetos "al primo canto"; as farinhas e fusões pernambucanas.
Por isso, quando alguém me diz "esta é a verdadeira cozinha do Brasil", ou "esta é a verdadeira música do Brasil", ou "esta é a verdadeira feijoada brasileira", digamos que tremo de indignação. Não existe Brasil, propriamente dito - mas Brasis, como ficou escrito em parte da literatura portuguesa do século XIX: os Brasis, esse continente de extensões e declives, de chapadas e de planaltos, do pampa às florestas, como escreve o grande Euclydes da Cunha, um dos grandes mestres da nossa língua. Vejam como começa "Os Sertões": "O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior."
E fomos ao Comida de Santo, uma casa histórica de referência para o Brasil e para a comida baiana, a dois passos do Príncipe Real, evocando a memória da paixão brasileira de António José Pinto Coelho, o seu criador nos anos oitenta. E desfilam, então, as moquecas de camarão ou de peixe, fervilhando no seu molho de azeite dendê, os ensopadinhos de camarão e de peixe com leite de coco, o vatapá bem baiano, enlaçado com o bobó de camarão, o virado paulista (com o tutu de feijão, evidentemente), o camarão com catupiry e (ah!, senhores e senhoras!) a mais brutal saudação à cozinha doméstica e histórica dos lares brasileiros, tão gabada por Nelson Rodrigues, o ensopadinho de abóbora com carne de sol (o meu prato brasileiro preferido, se for bem preparado) - além da carne de sol acebolada, da feijoada, do xinxim de galinha ou do picadinho à mineira. Todos estes pratos são, para mim, música celestial – tradicionais, intensos, perfumados, evocativos, triunfais, terminando com uma prova de quindim, de bananada ou de pudim de aipim.
A minha opinião está toldada pela saudade e não é um alto momento do meu julgamento porque, além do mais, aparecem, juntamente com as comidas, lembranças das cervejas locais, da Bohemia Weiss à Baden-Baden, da Schmitt à La Brunette, da Devassa à Eisenbahn e à Cerpa. Infelizmente não se apanham cá.
É preciso dizer que o Comida de Santo não é "um restaurante de comida brasileira", partindo do princípio de que a comida brasileira não existe (em seu lugar, um carrossel de designações: paulista, baiana, gaúcha, mineira, etc.) – mas o seu, digamos, "paradigma", transporta o ideal de uma culinária caseira e intensa, verdadeira, que terá os seus detractores e os seus amadores fiéis. Considerem-me entre os segundos.
À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 47
Vinhos brancos: 16
Vinhos verdes: 6
Portos & Madeiras: 4
Uísques: 14
Aguardentes portuguesas: 10
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: à noite
Preço médio: 25 Euros
COMIDA DE SANTO
Calçada Engenheiro Miguel Pais, 39
1200-172 Lisboa
Tel. 21 396 33 39
in Revista Notícias Sábado – 15 Dezembro 2007
Etiquetas: Restaurantes
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