dezembro 03, 2007

Reproduzam-se, portugueses!

Desculpem mas o tema é meu. Escusam de protestar e de ironizar, mas não vi muita gente a protestar na altura. Quando o governo quis punir por vias fiscais, creio, os casais sem filhos ou apenas com um rebento – não me lembro de ver a rapaziada a apoiar-me na guerra contra a política de repressão que visava os maus reprodutores. Para o Estado, os portugueses deviam reproduzir-se com mais regularidade e visibilidade. Era esta a mensagem: “Tenham filhos. Reproduzam-se. O Estado precisa de filhos e de contribuintes.” Quem não se entregasse às alegrias da paternidade, com os seus exultantes sacrifícios e as suas passageiras alegrias, estava em condições de ser punido pela máquina fiscal, ou discriminado face às famílias que tinham decidido multiplicar-se como mandam os evangelistas.

Acontece que o Estado gosta muito da natalidade dos seus cidadãos, exercitando-se em teorias sobre a fraca taxa de reprodução do povo, quase sempre em jeito de queixinhas. Que as pessoas já não querem famílias numerosas (fazem elas bem), que não estamos a olhar bem para o problema da taxa de natalidade europeia (sei lá), que precisamos de mais filhos gerais para equilibrar a previdência, as contas do Estado, o que vai por aí fora. Depois, o argumento moral, que não falha: os europeus não se reproduzem e daqui a umas décadas desaparecem. Portanto, resumindo, o que o Estado quer é que os cidadãos se “sacrifiquem” em seu nome, para reequilibrar as contas. Dito assim, parece uma cousa fracturante, do género “toca a reproduzir”.

Depois de ter ensaiado uma forma de discriminação negativa das famílias pouco numerosas ou dos celibatários, o governo decidiu deixar a coisa no capítulo dos ensaios. O presidente da República voltou a falar do assunto recentemente, insistindo “no problema” e, quem sabe, no desaparecimento da raça, perguntando-se se os portugueses ainda sabem como se fazem filhos. Ora, “o problema” é que a vida está como está, e ninguém de cabeça a funcionar com o mínimo de neurónios aceitáveis quer pensar nas suas obrigações reprodutivas em nome do Estado, da pátria e do futuro da nacionalidade. O Estado que tenha filhos onde quiser, mas não aborreça as pessoas com imperativos morais; o Estado é o último da fila quando se trata de questões morais.

Não sei se o leitor sabe, mas a zona onde os portugueses se reproduzem menos é na Serra da Estrela; seguem-se o Douro, Alto Trás-os-Montes, Pinhal Interior Sul e Beira Interior Norte, todas com um índice de fecundidade de 1,1. O presidente da República, vendo o deserto em que o interior das Beiras se está a transformar, lançou o repto sobre a necessidade de nos reproduzirmos. Eu concordo, por conveniência do debate. Mas olhemos para as contas dos cidadãos. Não para as contas do Estado. Insisto: para as contas dos cidadãos, para a carga fiscal, para a indiferença do Estado frente aos cidadãos (e, em especial aos pobres, aos velhos, aos desempregados). Olhemos para o trabalho dramático de Isabel Jonet à frente do Banco Alimentar e das histórias trágicas que ela conta.

Diante disto, alguém de bom-senso tem coragem de pedir aos cidadãos que se reproduzam, que se multipliquem (mesmo que seja a troco de 2500€?) e que traduzam, nas maternidades, o índice de felicidade em que vivem?

O Estado pode pedir-nos o que entender. Mas meter-se nas nossas contas privadas e nas nossas vidas íntimas?

in Jornal de Notícias – 3 Dezembro 2007

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