O mundo perfeito
O presidente da República sonha, como todos nós, com um mundo perfeito. Por isso, neste fim-de-semana, não só defendeu que os governantes devem ouvir o povo (está em causa a relação entre o Ministério da Educação e os professores), como insistiu que os problemas da educação não se resolvem com a baixa dos critérios de exigência e rigor na avaliação. O exemplo da matemática serviu-lhe que nem uma luva: “A resposta a esse problema não pode ser a desculpabilização do insucesso nem tão pouco dizer que a matemática é fácil e divertida.”
Em linhas gerais, é esse o caminho que tem sido seguido: ou se alargam as estatísticas para servir os propósitos de “inclusão”, ou se alargam os métodos para que todos brinquem na sala de aula e ninguém se aborreça. É um método conhecido de todos os que se interessam pelas coisas da educação. Se as notas andam muito baixas, levantam-se as médias; se os alunos não se interessam, aligeiram-se os conteúdos e introduz-se a variante “divertimento na sala de aula”. E o mundo ficaria muito mais perfeito.
O governo tem, como todos os outros, os anteriores e os que lhe seguirão (lamento informar o senhor primeiro-ministro, mas haverá mais governos depois deste), um problema com as estatísticas. Geralmente, e muito surpreendentemente, as estatísticas atrapalham os números e, sobretudo, os bons números. Um dos processos para contrariar esta desobediência das estatísticas é o de impedir que elas “excluam”; pelo contrário, devem “incluir”. Se há notas muito negativas a matemática, ou a, digamos, física-química, um dos processos que pode ser usado é o de subir as notas ou moderar os critérios de classificação. Logo, fica muito mais gente “incluída” e as estatísticas melhoram. Se há “abandono escolar”, acabar-se com os chumbos por faltas pode ser um processo “facilitador”.
Acontece que o papel das autoridades não é o de serem “facilitadores” de coisas que não podem ser facilitadas, sobretudo quando são exaradas lá do alto, dos corredores do Ministério da Educação. Uso a palavra “corredores” porque qualquer responsável do ME sabe que se trata de um labirinto onde tudo se perde.
Os pais sabem, às vezes tardiamente, os bons professores sabem, por muitos anos de experiência, que “facilitar as coisas” pode mostrar um mundo perfeito. Mas o mundo perfeito não existe. Eu entendo bem os pedagogos visionários e utópicos, que prevêm que com divertimento e tolerância tudo se arranja e o mundo ficará melhor. Mas não fica. Não vai ser. Pensamos que basta dar o exemplo, ler, ouvir música, usarmos computadores, sermos tolerantes – e generosos, educados, prestáveis, interessados. Com isso o mundo seria melhor. Mas não basta, infelizmente não basta. Com isso, os adolescentes das escolas seriam pessoas melhores, não usariam aquela gramática de grunhos, não faltariam às aulas, não desdenhariam dos professores que se esforçam e lhes ensinam a diferença entre o culto e o inculto, o cru e o cozido, o bem e o mal. O mundo seria perfeito. As famílias seriam honradas, pacíficas, passeariam ao domingo, fariam piqueniques, todos ajudariam a arrumar a cozinha e dormiriam a horas. Os nossos filhos leriam Dickens e Eça – ou, na pior das hipóteses, arrumariam os livros nas estantes. Interessar-se-iam por ciência e por política. Eu bem os entendo – mas não basta. É muitas vezes necessário ser cruel, usar a autoridade quando não se quer, dizer “não” quando até poderíamos dizer “sim”, pensar no que significa, de facto, a palavra exigência. A vida não é fácil. Não nos basta sermos o que somos. É preciso pensarmos nisso – que a vida não é fácil e que apender exige esforço. A democracia, que transformou as escolas em “estabelecimentos de ensino”, como se fossem “lojas do cidadão”, tem de resolver esse problema. Para ver se a escola volta a ser escola.
in Jornal de Notícias – 17 Dezembro 2007
Em linhas gerais, é esse o caminho que tem sido seguido: ou se alargam as estatísticas para servir os propósitos de “inclusão”, ou se alargam os métodos para que todos brinquem na sala de aula e ninguém se aborreça. É um método conhecido de todos os que se interessam pelas coisas da educação. Se as notas andam muito baixas, levantam-se as médias; se os alunos não se interessam, aligeiram-se os conteúdos e introduz-se a variante “divertimento na sala de aula”. E o mundo ficaria muito mais perfeito.
O governo tem, como todos os outros, os anteriores e os que lhe seguirão (lamento informar o senhor primeiro-ministro, mas haverá mais governos depois deste), um problema com as estatísticas. Geralmente, e muito surpreendentemente, as estatísticas atrapalham os números e, sobretudo, os bons números. Um dos processos para contrariar esta desobediência das estatísticas é o de impedir que elas “excluam”; pelo contrário, devem “incluir”. Se há notas muito negativas a matemática, ou a, digamos, física-química, um dos processos que pode ser usado é o de subir as notas ou moderar os critérios de classificação. Logo, fica muito mais gente “incluída” e as estatísticas melhoram. Se há “abandono escolar”, acabar-se com os chumbos por faltas pode ser um processo “facilitador”.
Acontece que o papel das autoridades não é o de serem “facilitadores” de coisas que não podem ser facilitadas, sobretudo quando são exaradas lá do alto, dos corredores do Ministério da Educação. Uso a palavra “corredores” porque qualquer responsável do ME sabe que se trata de um labirinto onde tudo se perde.
Os pais sabem, às vezes tardiamente, os bons professores sabem, por muitos anos de experiência, que “facilitar as coisas” pode mostrar um mundo perfeito. Mas o mundo perfeito não existe. Eu entendo bem os pedagogos visionários e utópicos, que prevêm que com divertimento e tolerância tudo se arranja e o mundo ficará melhor. Mas não fica. Não vai ser. Pensamos que basta dar o exemplo, ler, ouvir música, usarmos computadores, sermos tolerantes – e generosos, educados, prestáveis, interessados. Com isso o mundo seria melhor. Mas não basta, infelizmente não basta. Com isso, os adolescentes das escolas seriam pessoas melhores, não usariam aquela gramática de grunhos, não faltariam às aulas, não desdenhariam dos professores que se esforçam e lhes ensinam a diferença entre o culto e o inculto, o cru e o cozido, o bem e o mal. O mundo seria perfeito. As famílias seriam honradas, pacíficas, passeariam ao domingo, fariam piqueniques, todos ajudariam a arrumar a cozinha e dormiriam a horas. Os nossos filhos leriam Dickens e Eça – ou, na pior das hipóteses, arrumariam os livros nas estantes. Interessar-se-iam por ciência e por política. Eu bem os entendo – mas não basta. É muitas vezes necessário ser cruel, usar a autoridade quando não se quer, dizer “não” quando até poderíamos dizer “sim”, pensar no que significa, de facto, a palavra exigência. A vida não é fácil. Não nos basta sermos o que somos. É preciso pensarmos nisso – que a vida não é fácil e que apender exige esforço. A democracia, que transformou as escolas em “estabelecimentos de ensino”, como se fossem “lojas do cidadão”, tem de resolver esse problema. Para ver se a escola volta a ser escola.
in Jornal de Notícias – 17 Dezembro 2007
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