dezembro 04, 2007

Outro Preto, o luxo da contemplação

Havia uma poeira amarelada, fina. Essa não foi a primeira imagem, mas foi a mais intensa, aquela que perdurou. A primeira foi a do desenho de um vale escuro, denso, sitiado pelo pico do Itacolomi e pela serra da Mantiqueira, pelos fios de água do rio das Velhas e do Piraci­caba, mergulhado naquela vaga de calor onde cada pedra fala da história e do pas­sado. É impossível não ceder ao peso da história e do passado; casarões erguidos em colinas, em ladeiras e becos, pracetas onde ipês frondosos servem de teste­munhas à passagem do tempo em Ouro Preto, a primeira capital de Minas Gerais.

Mas a outra imagem, a decisiva, apa­receu depois: uma poeira fina misturada às nuvens de calor que subiam e desciam o vale. Foi mais do que isso que levou D. Pedro I a chamar-lhe Imperial Cidade de Ouro Preto, substituindo o nome antigo, Vila Rica – o desígnio da História, o centro difusor do independentismo brasileiro que alimentou a Inconfidência Mineira e a conspiração do Tiradentes, a importância económica da região, a tradição de uma cidade que foi capital do barroco brasileiro. Essa euforia custou caro à cidade: seguiram-se anos de isolamento e de silêncio até ao ressurgimento nos úl­timos anos, com uma população essen­cialmente universitária e com o turismo cultural dos que vêm conhecer a cidade que poderia ter sido capital do Império.

Estive pela primeira vez em Ouro Pre­to em 1998, depois de uma viagem de carro a partir do Rio, atravessando as serras, aproximando-se dessa visão da poeira do vale e da imagem da cidade, encimada pela igreja do Carmo numa das colinas. O que eu mais conhecia era Tomás An­tónio Gonzaga, um dos meus poetas, voz estranha de andarilho e, diz-se, de amante displicente. Nasceu em Gaia, viveu em Ouro Preto e na Baía e, na sequência da revolta da Inconfidência Mineira e do su­plício de Tiradentes, foi deportado para Moçambique, onde foi funcionário das alfândegas da época. Penou na ilha de Moçambique até ao fim. «São estes os lu­gares, eu o mesmo não sou» remete-me para os seus poemas a Marília de Dirceu, musa e inspiradora de muitas visitas ac­tuais a Ouro Preto, cuja casa se encontra lá, bem arrumada no fundo de uma das ruas, junto a um chafariz e de uma para­gem de «ônibus». De alguma maneira, tanto Gonzaga como Cláudio Manuel da Costa fizeram o melhor da poesia pós-barroca, só comparável em génio ao atormentado e revolucionário Bocado Inferno, o «genial canalha» Gregório de Matos, poeta baiano do século XVI.

Ouro Preto lembra a história das cidades abandonadas por algum mistério do tempo. No caso, tratou-se da decadên­cia da vida das minas e da importância acrescida de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais — mas eu suponho que há mais. Há aqui o perfume da maldição e do castigo por, nesses tempos de glória, a riqueza dos seus habitantes ter levado a cobrir varandas e fachadas com folha de ouro. Isolada do mundo, escondida no vale, Ouro Preto fomentou aquela luxúria da decadência e foi um centro produtor de música, de pintura, de escultura, de litera­tura – e de contemplação, a mãe de todos os vícios artísticos. Hoje, a poucos quilómetros de Ouro Preto, visitando Congonhas do Campo para revisitar as es­culturas de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, vê-se como esse drama esta­va anunciado. A obra do Aleijadinho es­tá presente em toda a cidade de Ouro Pre­to (onde nasceu e morreu, 1730-1814), nomeadamente na Igreja de São Francis­co – mas em nenhuma obra como a dos 12 Profetas de Congonhas do Campo se nota a tragédia no olhar daquelas persona­gens que escondem as figuras dos revol­tosos e conspiradores da Inconfidência.

Ao crepúsculo, Ouro Preto recebe os seus fantasmas, um a um. Falei da contem­plação como um dos elementos da luxú­ria; não é por acaso: ao observar o vale de­saparecendo sob a escuridão, percebe-se por que nenhuma outra cidade brasileira vive tanto o passado e os seus mistérios.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2007

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