Ponto e vírgula, o Tejo
De memória, o cronista acha que já chegou mesmo o frio do Inverno. Mesmo assim, o rio é o rio.
O que acaba, acaba – o Outono, por exemplo, para não mencionar desgraças menos ocasionais. E os passeios crepusculares junto do Tejo. E o que vai por essa lista fora. Tendo saído recentemente uma edição da "Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin (tem o prefácio de Alfredo Saramago), entretive-me a anotar páginas, a separar citações, sublinhados, devaneios – sabemos tão pouco, distraímo-nos tanto, julgamo-nos tão acertados quando emitimos uma opinião. E, na verdade, se tudo vem em Aristóteles, e se tudo vem em Homero, e se tudo vem no passado, meditemos sobre o refogado, por exemplo - a arte de preparar a cama dos alimentos, de os receber com uma breve fritura para realçar as texturas e não deixar que percam substância no seu interior. Coisa tão antiga e tão inovadora todos os dias.
Mas hoje não me puxem pela imaginação, que está pobre. Acontece. Nem sempre o delírio do cronista segue a caminho do restaurante, ou do restaurante para casa, com aquele ademane do toureiro que acaba a 'faena' e não sabe se triunfou. Ventos há, como escrevia o saudoso Nuno Bragança, que empurram outros ventos, recordações, memórias, traições, epifanias. O cronista tem o direito de ser um romântico em busca de redenção e de uma originalidade que não tem a ver com a realidade propriamente dita. Pede-se-lhe rigor absoluto, uma espécie de prática científica, um resto de aprendiz de alquimista ou, pelo menos, alguém que revele os segredos das fusões químicas, mencionando legumes no ponto, carnes suculentas, peixes que permitem conversa. Mas há sabores que nos traem. O de uma terrina de foie gras com queijo de figo, por exemplo, se eu fosse voraz e não pensasse noutra coisa. Penso. O VírGula obriga-nos a pensar noutras coisas, mesmo diante do Tejo, seja Inverno ou Verão, haja luz ou neblina: na delicadeza e no prazer.
A mim lembra-me também Agustina Bessa-Luís e um dos seus títulos, ‘Prazer e Glória’, gente que passa e se enternece diante dos choquinhos com raviolli negros, da abrótea arrepiada com xerém de amêijoa, tanto como pode escolher a bochecha de vaca estufada em vinho tinto, com boletos e espargos ou o entrecôte de novilho, milho frito e esparregado. Há, na cozinha do VírGula, uma tentação do abismo que não larga as suas margens, a derradeira amarra que nos impede de sucumbir e saltar das alturas.
O que se pode dizer diante de croquetes de beringela, de queijo da ilha assado com pão alentejano, molho virgem e maçã bravo de esmolfe com cogumelos e espargos, ovo trufado e pata negra? Que de seguida se há-de escrever um soneto, uma alegoria cheia de intuições. As escolhas sucedem-se, a lista é vasta mas condensa o espírito da própria estação do ano, abandonando pratos frescos e reenviando-nos ao frio do tempo: onde o bacalhau fresco fez as delícias do Verão, há agora costela de leitão com puré de castanhas com aquela massinha de abóbora que se desfaz na língua, na companhia de um dos quase duzentos vinhos à disposição – uma "carta eleita", mais do que uma carta escolhida.
Esperemos pela sobremesa, nem que seja para a citar de memória, a começar pelo fofo de chocolate amargo com maçã caramelizada e gelado de café ou do creme brûlée de abóbora com gelado de nozes e da amostra daquela outra massa, brilhante e sinfónica, dos cinco chocolates disponíveis para a nossa gula, sem vírgula. O parfait de maracujá, provado em outra ocasião, é excelente.
Depois, vem a visão do rio, espaçoso e livre, cheio de ondulação. A terra equilibra-se, mesmo depois de pagar a conta, porque a experiência foi boa e pecaminosa, cheia de tentações. Muito bem, aplaudo.
À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 115
Vinhos brancos: 54
Vinhos verdes: 6
Porto e Madeiras: 20
Uísques: 16
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 45 Euros
VírGULA
Rua Cintura do Porto, 16
Armazém B (ao Cais do Sodré)
1200-109 Lisboa
Tel: 21 343 20 02
Encerra aos Domingos
in Revista Notícias Sábado – 22 Dezembro 2007
O que acaba, acaba – o Outono, por exemplo, para não mencionar desgraças menos ocasionais. E os passeios crepusculares junto do Tejo. E o que vai por essa lista fora. Tendo saído recentemente uma edição da "Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin (tem o prefácio de Alfredo Saramago), entretive-me a anotar páginas, a separar citações, sublinhados, devaneios – sabemos tão pouco, distraímo-nos tanto, julgamo-nos tão acertados quando emitimos uma opinião. E, na verdade, se tudo vem em Aristóteles, e se tudo vem em Homero, e se tudo vem no passado, meditemos sobre o refogado, por exemplo - a arte de preparar a cama dos alimentos, de os receber com uma breve fritura para realçar as texturas e não deixar que percam substância no seu interior. Coisa tão antiga e tão inovadora todos os dias.
Mas hoje não me puxem pela imaginação, que está pobre. Acontece. Nem sempre o delírio do cronista segue a caminho do restaurante, ou do restaurante para casa, com aquele ademane do toureiro que acaba a 'faena' e não sabe se triunfou. Ventos há, como escrevia o saudoso Nuno Bragança, que empurram outros ventos, recordações, memórias, traições, epifanias. O cronista tem o direito de ser um romântico em busca de redenção e de uma originalidade que não tem a ver com a realidade propriamente dita. Pede-se-lhe rigor absoluto, uma espécie de prática científica, um resto de aprendiz de alquimista ou, pelo menos, alguém que revele os segredos das fusões químicas, mencionando legumes no ponto, carnes suculentas, peixes que permitem conversa. Mas há sabores que nos traem. O de uma terrina de foie gras com queijo de figo, por exemplo, se eu fosse voraz e não pensasse noutra coisa. Penso. O VírGula obriga-nos a pensar noutras coisas, mesmo diante do Tejo, seja Inverno ou Verão, haja luz ou neblina: na delicadeza e no prazer.
A mim lembra-me também Agustina Bessa-Luís e um dos seus títulos, ‘Prazer e Glória’, gente que passa e se enternece diante dos choquinhos com raviolli negros, da abrótea arrepiada com xerém de amêijoa, tanto como pode escolher a bochecha de vaca estufada em vinho tinto, com boletos e espargos ou o entrecôte de novilho, milho frito e esparregado. Há, na cozinha do VírGula, uma tentação do abismo que não larga as suas margens, a derradeira amarra que nos impede de sucumbir e saltar das alturas.
O que se pode dizer diante de croquetes de beringela, de queijo da ilha assado com pão alentejano, molho virgem e maçã bravo de esmolfe com cogumelos e espargos, ovo trufado e pata negra? Que de seguida se há-de escrever um soneto, uma alegoria cheia de intuições. As escolhas sucedem-se, a lista é vasta mas condensa o espírito da própria estação do ano, abandonando pratos frescos e reenviando-nos ao frio do tempo: onde o bacalhau fresco fez as delícias do Verão, há agora costela de leitão com puré de castanhas com aquela massinha de abóbora que se desfaz na língua, na companhia de um dos quase duzentos vinhos à disposição – uma "carta eleita", mais do que uma carta escolhida.
Esperemos pela sobremesa, nem que seja para a citar de memória, a começar pelo fofo de chocolate amargo com maçã caramelizada e gelado de café ou do creme brûlée de abóbora com gelado de nozes e da amostra daquela outra massa, brilhante e sinfónica, dos cinco chocolates disponíveis para a nossa gula, sem vírgula. O parfait de maracujá, provado em outra ocasião, é excelente.
Depois, vem a visão do rio, espaçoso e livre, cheio de ondulação. A terra equilibra-se, mesmo depois de pagar a conta, porque a experiência foi boa e pecaminosa, cheia de tentações. Muito bem, aplaudo.
À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 115
Vinhos brancos: 54
Vinhos verdes: 6
Porto e Madeiras: 20
Uísques: 16
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 45 Euros
VírGULA
Rua Cintura do Porto, 16
Armazém B (ao Cais do Sodré)
1200-109 Lisboa
Tel: 21 343 20 02
Encerra aos Domingos
in Revista Notícias Sábado – 22 Dezembro 2007
Etiquetas: Restaurantes
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