setembro 16, 2006

Elegia da neblina

O cronista, diz, tem direito a pressentimentos românticos. E o Minho continua a estar no seu roteiro sentimental – ou seja, gastronómico. A Adega do Sossego, em Melgaço, é um exemplo.

Camilo queixava-se, não sem razão, de que se esperava sempre mais "do folhetim", cavalarias, trombetas cujo som chega das nuvens, campos cheios de flores, amores felizes, paisagens bucólicas ou festivas, diálogos fantásticos – mas a vida é outra coisa. Bom Camilo. Folheio os seus livros muitas vezes como uma enciclopédia; têm tudo: política, sentimento, até literatura, amores con­trariados (muitos), maledicência (bastante), Minho, Porto e gastronomia. Não é uma enume­ração, sequer; trata-se de "um repente" que dá no leitor de Camilo quando se levanta numa destas até aqui raras manhãs de neblina portuense, ao fím-de-semana, e toma a estrada que passa pelo meu litoral de infância e adolescência, quando ir à praia significava "ir para a praia" (uma semana, uma quinzena, umas semanas) e havia romarias sensuais de Verão, muito aborrecidas na minha memória – mas recuperadas com o tempo.

Seja, pois, o Minho. O leitor sabe que nutro uma certa simpatia romântica pelo lugar – e o meu estômago agradece porque, a cada peregrinação, quer pelas colinas das serras quer pelo litoral verdejante que me leva quase sempre à Galiza, há sempre um lugar de poiso agradável. Um dia falarei do assunto. Seja, pois, o Minho – porque o cronista tem direito aos seus pressentimentos românticos e a misturar o seu roteiro sentimental com o seu mapa gastronómico, partindo-se do princípio de que cada um é como é. Já não ia lá há muito tempo, porque Melgaço fica num dos pontos extremos do meu atlas – o que é pena. O meu avô bebia águas de Melgaço e gabava-Ihe as virtudes, que eram sempre excedentes em relação às suas potencialidades. Eu, que relembro essas garrafas escuras de águas termais, passo adiante na direcção da mesa da Adega do Sossego, como um pecador convicto. "Pecai, pecai!", dizia o santo. Eu obedeço.

A mesa está repleta de entradas saborosas - enchidos cuidadosos no seu tempero, pão fresco (e não apanhei lampreia fumada!), pratinhos con­vidativos. Um quarteto de cordas, uma música de câmara entra pelos meus ouvidos cheios de ressenti­mento nestas paredes "rústicas", de adega caseira, toalhas brancas, rumores e humores da cozinha, latadas no exterior sempre visíveis das janelas. É o meu Minho. Se nesta altura do ano a lampreia (à bordalesa, cozida, panada, seca, envolvida no arroz caldoso e humedecido até às minhas lágrimas) não faz aparição permanente, contentemo-nos com o bacalhau na brasa, excelente, de cebolada – se bem que um dos meus companheiros me provasse a excelência da sua truta com presunto (que a mim me lembrou o vetusto e outrora monumental Santa Cruz, de Boticas, de boa memória) e do sável local. Fui, pois, pelo bacalhau – ah, aprendei, restaurantes urbanos, lisboetas e quejandos!, a respeitar a lasca salgadinha, gelatinosa, perfeita, elegante, carregada de evocações numa posta alta e firme, preparada para transformar a nossa alma numa coisa desmilinguida. Depois, fui pelo costeletão, frondoso, for­moso, formidável, coisa rara de se encontrar nos restaurantes da União Europeia, com a grandiloquência do entrecosto de vaca (ou costela de tira - e, como era domingo, havia um cozido que, murmuro baixinho, está doravante entre os primeiros da minha lista (em breve vos falarei do cozido do Conselheiro, de Paredes de Coura). Que vitela fan­tástica! Pedi grelos - havia, azedinhos, compostos, suculentos. Vi passar um cabritinho numa travessa muito composta e rejubilei porque vinha para a nossa mesa: batatinhas farinhentas, boas, textura muito aceitável.

Bebi o vinho da casa, Alvarinho da Adega do Sossego propriamente dito. Esqueci-me, portanto (está bom de ver), dos meus deveres de cronista, que devia estar a tomar notas, comparar, avaliar, exercer o que restava da minha honorabilidade. Não me lembro de mais nada. Apenas da neblina que caía sobre mim num domingo cheio de sol. E se a neblina não vinha do céu, de algum lado vinha. Que sossego, senhores, que sossego. Foi a última coisa de que me lembro.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 80
Vinhos Brancos: 50
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 20
Aguardentes & Conhaques: 18

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Imprescindível
Preço médio: 25 Euros

ADEGA DO SOSSEGO
Lugar do Peso, Paderne
4960-310 Melgaço
Tel: 251 404 308
Encera às quartas; fecha­do até 30 de Setembro

in Revista Notícias Sábado – 16 Setembro 2006