setembro 18, 2006

Carta aos amigos muçulmanos

Caros amigos sei que a figura do Papa não é insignificante; o que o chefe dos católicos diz adquire um peso que ultrapassa os limites do mundo católico. O vosso comunicado sobre as declarações do Papa é cauteloso e inteligente: reconheceis a tristeza que causou entre os muçulmanos a conferência de Bento XVI (era um texto académico) mas admitis que, bem vistas as coisas, não era caso para tanta efervescência. Lamentais que o Papa tenha dito o que disse nestas circunstâncias ("o Papa foi decerto muito infeliz na sua escolha, sobretudo nos tempos tão conturbados em que vivemos").

Compreendo "as circunstâncias", mas não a "ladainha do queixume". Se concordais em que não "parece que fosse intenção expressa do Papa Bento XVI atacar o Islão e os muçulmanos, sobretudo atendo à forma como termina, incitando ao uso da razão no diálogo de culturas", não compreendo a reacção de muitos dos vossos amigos e companheiros de fé, para além daqueles que - um pouco por todo o lado, no Médio e no Extremo Oriente, em Londres e em Paris - são companheiros da vossa fé mas não serão, certamente, vossos amigos. Pessoalmente, achei pertinente a conferência do Papa na Universidade de Ratisbona; estimulante, como agora se diz - e feliz na forma como deixa esse apelo sensato ao uso da razão.

Portanto, não compreendo como esse apelo (com o qual concordais) pode constituir, nas vossas palavras, um "infeliz exemplo". Infelizes exemplos encontramo-los diariamente noutros lugares e nestas mesmas "circunstâncias", causando devastação, morte e perseguição religiosa.

Sabeis que não sou um homem de fé, mas tenho argumentos a meu favor no diálogo com o Islão - não com o terrorismo, com os fundamentalismos ou com as guerrilhas que só falam através das armas e das bombas, do vosso lado e do meu lado. Se vos recordais, foi pela minha mão que, em muitos anos de relações entre as comunidades judaica e muçulmana (não apenas de Portugal), um rabino entrou pela primeira vez na vossa mesquita em Lisboa; faltava ainda algum tempo para o Ramadão mas era véspera de Sukot no calendário judaico e foi também comigo que pela primeira vez o xeique David entrou na sinagoga Shaare Tikvah, em Lisboa. O diálogo, que alguns pedem consoante as circunstâncias e os interesses políticos de momento, não pode existir se não se praticar. Não podeis furtar-vos ao diálogo com o argumento de que os argumentos dos outros vos ofendem; muitas vezes, os outros ("os outros" do meu lado) querem apenas compreender. Temos certamente posições diferentes sobre o riso, sobre a condescendência ou a intransigência diante dos dogmas, sobre os direitos humanos, sobre a liberdade e sobre a natureza e os direitos da fé religiosa.

Ao contrário do que se diz correntemente em "encontros ecuménicos", caros amigos, penso que, ao longo dos tempos, a religião tem sido um factor de guerra mais do que elemento de paz. Provavelmente, atravessamos um desses momentos, com erros de ambos os lados da barreira em que nos colocámos e que não é unicamente religiosa. As três principais religiões do Livro, como sabeis, não podem invocar um plano de inocência total ou até parcial em matéria de respeito pelos outros, de tolerância e de justiça. É o que menos me preocupa. Falemos como homens, uns diante dos outros.

Frequentemente vos ouço falar de "ofensas". Compreendo o princípio mas não posso abdicar daquilo que sou e somos prezamos a liberdade, o diálogo e a tolerância. Defenderei os vossos direitos. Mas não estou em condições de vigiar permanentemente cada frase para ver até que ponto vos ofende a maneira como citamos um autor, um versículo ou uma data. O Papa falou; não vos indigneis. Ripostai. Falai. Mas dizei-me se achais bem que queimem as ruas por causa de uma frase.

in Jornal de Notícias - 18 Setembro 2006