setembro 09, 2006

Velas à santa

1. Imaginemos que eu tenho em meu poder, devidamente dactilografado e com anexos, apensos e notas de rodapé, um relatório sobre actividades alegadamente comprometedoras de uma, duas ou vinte instituições que não fazem jeito que existam. Chamo-lhe “dossiê”, exibo-o diante das câmaras de televisão, ameaço, sustento que me chegou às mãos por razões que desconheço – e que o seu autor, anónimo para todos os efeitos, me disse ser tudo verdade. Claro que eu posso ter mandado coligir os documentos, reunir os anexos e redigir a acusação. Mas que importa se as massas agradecem e a multidão rejubila? Assim vai o futebolês. Uma espécie de vergonha escrita a baldes de tinta vermelha.

2. O mundo das escutas telefónicas é trepidante, como se sabe. Ora menciona camaradagens ora nos revela um pouco do modo como todos entram no reino dos céus, escolhendo árbitros e deixando as pegadas no chão. Por elas, ficámos a saber que ninguém quer estar a salvo.Um dos autores clássicos mais chatos de ler, J. J. Rousseau, o teorizador moderno do estado totalitário e das baboseiras mais infernais sobre a educação das crianças (ele tinha abandonado os seus próprios filhos), passou a vida a queixar-se da saúde, das perseguições, das armadilhas, dos outros. Com o tempo descobriu-se que era quase tudo mentira. Ele apenas se julgava melhor do que os outros. Aprendam.

3. Sejamos cruéis ao menos uma vez na vida. Ganhámos aos penaltis com a Inglaterra, andámos ao sopapo com os holandeses, perdemos com a França e com a Alemanha, depois perdemos com a Dinamarca – e, finalmente, recuperámos, empatando com a fantástica, soberba, inacessível e temida Finlândia. Não é mau, desse ponto de vista. Evidentemente que a chegada ao topo se constrói passo a passo, com vitórias, empates e derrotas, mas Scolari continua a treinar a rapaziada da Selecção como treinava o Brasil de Pelotas e o Grêmio de Porto Alegre: esforço físico, abnegação, cotovelaço e velas à santa.No jogo com a Finlândia, Felipão não contou com abnegação nem com esforço físico; houve um nadinha de cotovelaço e desconheço se acendeu as velas à santa. A justificação ainda era cedo e a rapaziada estava cansada. Claro que os finlandeses (depois de terem dado 3 à Polónia), com a proximidade do Pólo, tinham vantagem – estavam mais frescos e tinham um suplemento anímico. Nós tivemos os incêndios e o Verão algarvio, o que nos cansa muito e nos indispõe. Como toda a gente percebeu, tretas. A verdade é que jogámos mal e Scolari ainda não tem equipa. Se continuar a ser rezingão a despropósito (sim, que eu acho que se pode ser rezingão com propósitos), vai ser um chato que nem vos conto.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 9 Setembro 2006