setembro 04, 2006

Há um governo inevitável?

Gosto das pessoas que resistem e interesso-me pelas que desistem. E até pelos silêncios em redor de uns e de outros. Vamos e venhamos, a política portuguesa regressou de férias com dois momentos a reter um manifesto sobre a Direita e um texto de José Sócrates publicado no "Expresso" de anteontem acerca do próximo congresso do PS. Há mais exemplos banais da chamada rentrée mas, para além dos rituais de Setembro, distribuídos pelos calendários dos partidos, estes acontecimentos valem a semana - não apenas pelo que afirmam mas também pelos silêncios e pelos burburinhos que geram.

Manuel Monteiro decidiu que tinha chegado a altura de esclarecer o país sobre "o que é ser de Direita". O texto não é despiciendo; pelo contrário, devia ser lido e merecia mais discussão, independentemente do peso quase nulo do PND. Marcelo Rebelo de Sousa pôs o dedo numa das feridas em relação a este manifesto, chamando a atenção para o pormenor de que "não faz sentido que quem não tem representatividade à direita queira forçar o PSD ao debate". Para bom entendedor, isto quer dizer o seguinte: o PSD não deve mencionar o assunto. Ou seja, o PSD até pode ter uma palavra a dizer; mas isso significaria ser arrastado pela loucura de Manuel Monteiro e ir a reboque de um partido inexistente. Esta é a vida real, para um bom político: se há ideias para discutir, elas devem ser discutidas dentro dos partidos e no interior da sua estratégia. Que interessa ao PSD debater o "pessimismo antropológico" ou "o papel do Estado na educação"? Nada, segundo Marcelo. Essas coisas não interessam à pátria, que continuará dividida entre o PS e o PSD na disputa pelo parlamento e no tabuleiro do habitual jogo do monopólio. Nesse sentido, o manifesto só vem "atrapalhar" e "dividir".

Por isso o texto de José Sócrates é importante. Mais uma vez, não apenas pelo que ele diz (que vai haver um congresso do PS e que daí em diante a velha jogatana de tendências internas ficará arrumada) mas pelos sintomas que exibe. É preciso compreender, antes de mais, que nenhum primeiro-ministro socialista teve tanto poder em Portugal; que nenhum governo de esquerda teve tanto apoio do centro e da direita como este; que nenhum governo aproveitou tão bem o seu tempo como o de José Sócrates - inclusive pelo facto de, "sendo de esquerda" (é um eufemismo), se ter dedicado a fazer as mudanças pelas quais qualquer governo à direita seria, num ápice, crucificado nas ruas e no Parlamento.

Votando Sócrates e votando Cavaco, o centro político e sociológico assumiu uma espécie de inevitabilidade do governo de Sócrates. Essa é a grande lição de 2005, a que mostrou o cansaço dos portugueses. E também a sua resignação.

O centro quer o ano lectivo a começar a horas e disciplina nas escolas. Quer sensatez na política externa e vigilância na administração pública - mais do que reformas que assustam e desmoralizam as classes médias. Quer as corporações debaixo de olho e alguém com voz forte no governo. As duas últimas experiências à direita foram, nesse sentido, uma desilusão - e a última, mesmo, uma catástrofe. Sócrates incarna como poucos o coração da classe média e a tranquilidade "dos empresários". De alguma maneira, à inevitabilidade do governo de Sócrates só falta juntar a inevitabilidade do PS. É isso que Sócrates se dispõe a alterar, disciplinando o partido e explicando aos militantes que a vida é mesmo assim - e mostrando aos eleitores que ele é capaz de arrumar a casa e de expurgar o folclore.

O PSD, entretanto, não aproveitou este tempo. O "velho PSD" colaborou na eleição de Marques Mendes para melhor poder trucidá-lo. Mas para quê, se Sócrates está a fazer o trabalho todo?

in Jornal de Notícias - 4 Setembro 2006