O partido único e o cartão único
1. A assinatura do pacto para a justiça, na semana que passou, é um acontecimento relevante. A ideia dos “pactos de regime” atravessa de vez em quando a vida política portuguesa; Vasco Pulido Valente fez bem em relembrar que a ideia pertenceu a Sá Carneiro nos primeiros anos de democracia, como forma de assegurar um mínimo de estabilidade e de consenso. Trinta anos depois, não sei se essa “exigência” fará sentido.
A última vez que a ideia de um “pacto para a justiça” foi brandida como uma solução miraculosa para resolver os problemas “do sector”, era Santana Lopes primeiro-ministro e o país ainda fervia de indignação e suspeita diante de alguns escândalos judiciais. Percebeu-se a intenção mas ninguém avançou realmente para esse mínimo de “estabilidade e consenso”.
Não vem mal ao mundo que exista um “pacto de regime” – na verdade, o mais assustador é que se mencione permanentemente a sua necessidade como se o regime estivesse em perigo e precisasse de salvação. Não está e não precisa. O regime funciona com alguma normalidade. Não existe, como em Espanha, um perigo secessionista ou a ameaça do terrorismo; mas há sectores, ligados à vida do Estado, em que é necessário haver um acordo de princípio e é provável que o da justiça esteja em primeiro plano, juntamente com o da chamada reforma da administração pública. Há outros sectores em que um pacto não faz qualquer sentido – porque há opiniões diferentes sobre o que está em causa na economia, no sistema de ensino, no financiamento da segurança social ou nos regimes fiscais.
O consenso não faz mal a ninguém, mas a diferença existe para ser preservada e é útil que se separem as águas. Voltando ao assunto da semana passada, estamos a viver um momento especial da nossa história política que se traduz num realinhamento pelo centro, e que é resultado de duas eleições históricas: as vitórias de Sócrates e de Cavaco Silva fizeram coincidir eleitorados aparentemente distintos depois de uma fase de ressentimento inútil. A direita não fica desconsolada (como previa) com as iniciativas de José Sócrates e a esquerda não veio para a rua (como ameaçava) se Cavaco chegasse a Belém. Cavaco não promoveu o golpe de Estado que o soarismo, por exagero folclórico, antevia; e Sócrates não se mostrou, como a direita temia, “irresponsável” no ataque à indisciplina da administração pública. Pelo contrário, em seis meses Cavaco mostrou que é um bom presidente, e num ano Sócrates foi corajoso como nunca a direita o foi em matérias como a reforma do Estado e a criação de índices de confiança entre os cidadãos. O caminho estava preparado para a aliança entre ambos.
Simplesmente, há limites para o consenso. É normal pensarmos que PS e PSD defendem “sistemas de vida” diferentes, ou, pelo menos, deviam defender – e que Marques Mendes não é a outra face de Sócrates. E por isso é importante que este acordo de regime para a justiça não seja a antecâmara de uma exigência de consenso nacional sobre outras matérias. O país pode viver sem “pactos de regime”. O bem comum não assenta na unanimidade, obtida sob pressão, como se fosse inevitável – e muito desejada pelos partidos únicos.
2. A ideia do “cartão único” merece ser discutida: trata-se de um documento que vai substituir o Bilhete de Identidade e os cartões de identificação fiscal, de eleitor, de utente dos serviços de saúde e de beneficiário da Segurança Social, e que permite ainda registar informações pessoais relativas ao grupo sanguíneo, a indicações de alergias ou contactos do cidadão. A partir de agora, se essa ideia não for, como parece que é, declarada inconstitucional, cada cidadão terá um “chip” no bolso. Começa-se a controlar por algum lado. Dificilmente se acaba o desfile de coisas absurdas que acontecem depois.
in Jornal de Notícias – 11 Setembro 2oo6
A última vez que a ideia de um “pacto para a justiça” foi brandida como uma solução miraculosa para resolver os problemas “do sector”, era Santana Lopes primeiro-ministro e o país ainda fervia de indignação e suspeita diante de alguns escândalos judiciais. Percebeu-se a intenção mas ninguém avançou realmente para esse mínimo de “estabilidade e consenso”.
Não vem mal ao mundo que exista um “pacto de regime” – na verdade, o mais assustador é que se mencione permanentemente a sua necessidade como se o regime estivesse em perigo e precisasse de salvação. Não está e não precisa. O regime funciona com alguma normalidade. Não existe, como em Espanha, um perigo secessionista ou a ameaça do terrorismo; mas há sectores, ligados à vida do Estado, em que é necessário haver um acordo de princípio e é provável que o da justiça esteja em primeiro plano, juntamente com o da chamada reforma da administração pública. Há outros sectores em que um pacto não faz qualquer sentido – porque há opiniões diferentes sobre o que está em causa na economia, no sistema de ensino, no financiamento da segurança social ou nos regimes fiscais.
O consenso não faz mal a ninguém, mas a diferença existe para ser preservada e é útil que se separem as águas. Voltando ao assunto da semana passada, estamos a viver um momento especial da nossa história política que se traduz num realinhamento pelo centro, e que é resultado de duas eleições históricas: as vitórias de Sócrates e de Cavaco Silva fizeram coincidir eleitorados aparentemente distintos depois de uma fase de ressentimento inútil. A direita não fica desconsolada (como previa) com as iniciativas de José Sócrates e a esquerda não veio para a rua (como ameaçava) se Cavaco chegasse a Belém. Cavaco não promoveu o golpe de Estado que o soarismo, por exagero folclórico, antevia; e Sócrates não se mostrou, como a direita temia, “irresponsável” no ataque à indisciplina da administração pública. Pelo contrário, em seis meses Cavaco mostrou que é um bom presidente, e num ano Sócrates foi corajoso como nunca a direita o foi em matérias como a reforma do Estado e a criação de índices de confiança entre os cidadãos. O caminho estava preparado para a aliança entre ambos.
Simplesmente, há limites para o consenso. É normal pensarmos que PS e PSD defendem “sistemas de vida” diferentes, ou, pelo menos, deviam defender – e que Marques Mendes não é a outra face de Sócrates. E por isso é importante que este acordo de regime para a justiça não seja a antecâmara de uma exigência de consenso nacional sobre outras matérias. O país pode viver sem “pactos de regime”. O bem comum não assenta na unanimidade, obtida sob pressão, como se fosse inevitável – e muito desejada pelos partidos únicos.
2. A ideia do “cartão único” merece ser discutida: trata-se de um documento que vai substituir o Bilhete de Identidade e os cartões de identificação fiscal, de eleitor, de utente dos serviços de saúde e de beneficiário da Segurança Social, e que permite ainda registar informações pessoais relativas ao grupo sanguíneo, a indicações de alergias ou contactos do cidadão. A partir de agora, se essa ideia não for, como parece que é, declarada inconstitucional, cada cidadão terá um “chip” no bolso. Começa-se a controlar por algum lado. Dificilmente se acaba o desfile de coisas absurdas que acontecem depois.
in Jornal de Notícias – 11 Setembro 2oo6
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