maio 02, 2009

Histórias de aeroporto (2)

Doze horas, creio. Ao fim de doze horas de avião já não me apetecia fumar. Passeei pelo aeroporto – um dos mais «funcionais» do mundo – e comprei jornais para me sentar diante de um pequeno-almoço tardio e de um computador que me desse notícias. Acabei por não fazer nada disso. A noite tinha sido comprida, viajando da Europa para a Ásia, sobrevoando picos de neve e planaltos desertos – tudo matéria invisível escondida pela noite. A primeira luz do dia mostrou um mar fundo e escuro, exactamente como eu lembrava que não era o Índico. Depois, as florestas, densas, escuras, extensas, cobertas de neblina. Litorais onde, do céu, a crista das ondas era apenas uma coroa branca que se desfazia sem definição. E os prédios, altíssimos, de Singapura – os seus canais, as pontes, o brilho metálico dos edifícios, o formigueiro.

O meu vizinho de viagem dormiu pouco, segundo me garantiu. Ele vinha sozinho de Amesterdão para a Indonésia como um predador em busca de diversão barata e de doenças sexualmente transmissíveis; eu adormeci depois do jantar vegetariano, que tomei acompanhado de um comprimido que me garantiu oito horas de sono, a cabeça deitada sobre um livro que havia de perder. E Singapura. Desfiz-me do vizinho, que partiu em busca do duty free, e sentei-me no saguão enorme, amplo e deserto do aeroporto. A zona de fumadores era um terraço de luxo, com vegetação tropical, uma piscina, dois restaurantes e espreguiçadeiras voltadas para uma das pistas onde os aviões se alinhavam e deslizavam para levantar. O meu próximo voo estava marcado para daí a seis horas. O terraço de fumadores era óptimo.

Ao fim de meia-hora, ela – uma mulher madura, bonita, na casa dos cinquenta – levantou-se e veio pedir-me lume. Sentou-se e suspirou. Vinha de Roma, ajeitou o cabelo, ia para Sydney. Eu imaginava o regresso à Austrália, sobrevoando o grande recife de coral, enfrentando a luz do sul maravilhoso – ela regressaria a South Wales depois de duas semanas em Itália. Primeiro, partiu para o funeral da mãe. Era uma cidadezinha a cem quilómetros de Roma. O irmão veio de carro, de Pádua, e o carro despistou-se, na mesma madrugada em que ela chegara a Roma. Morreu. O funeral da mãe e o funeral do irmão. Três dias depois, o pai cedeu a um coração fraco e cansado. Novo funeral, o terceiro. Regressava agora a Sydney e estava sentada ao lado de um desconhecido que também acabara a sua reserva de tabaco, e com quem bebia uma cerveja sob um céu que, de repente, deixara de ser azul e passara a cinza-escuro, pesado, anunciando tempestade sobre as florestas.

“Tenho de continuar a viver. Talvez um dia regresse a Itália, mas não sei”, disse ela antes de acenar e de ir procurar o seu voo. Vidas. Vidas de aeroporto. Eu ainda tinha quatro horas de espera, antes de partir para a Indonésia e poderia alterar o voo, preferindo Denpaasar a Jacarta. Fiquei ali até ele aparecer, sem lume para acender o charuto. Ficou a contar a sua história: um noruguês que casou com uma argentina e que vivia numa ilha daquele lado do mundo. Por isso esperava o avião para Kuala Lumpur; ele falava papiá (kristiang) um dialecto de ressonâncias portuguesas, porque os empregados do hotel que comprara a um inglês que morrera de cirrose eram velhos emigrantes de Malaca.

Daí a duas horas desci para o saguão do terminal do aeroporto. Não fora à cidade, numa daquelas viagens rápidas, de autocarro turístico; voltaria daí a menos de um mês e talvez o fizesse então. Foi ao apressar o passo que choquei com um homem alto e desajeitado, que procurava a saída para o terraço de fumadores. Olhei-o bem e reconheci-o. Tinha-o visto em muitos filmes, atravessando aeroportos da América Latina, desajeitado como ali. Nick Nolte olhou para mim e continuou a apanhar as revistas que lhe caíram da mochila.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Maio 2009

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