dezembro 30, 2004

Os direitos humanos

Os portugueses acham que o ano de 2005 vai ser pior mas, mesmo assim, muitos deles (em maioria mais do que relativa, suponho) pensam que vai haver coisas melhores. Há aqui uma aparente contradição, como se pode ver o ano de 2004 foi muito mau; o ano de 2005 vai ser pior; mas pior do que 2004 não pode ser. Ora, eu penso que o raciocínio está essencialmente correcto e significa que os portugueses esperam pouco, mas desejam qualquer coisa e acham que têm direito a ela.

2004 foi interrompido por várias vezes. Os portugueses têm direito a um ano inteiro. Têm direito a pequenas coisas. São os direitos humanos dos portugueses. Há quem esteja em situação mais difícil do que a nossa; há quem não consiga viver como nós. Temos uma vida que podia ser decente, mas muitas oportunidades foram perdidas - na Administração Pública, nos negócios, na cultura, na educação. Os tempos mais recentes mostraram cada vez mais gente medíocre na televisão e na vida pública, o que pode ser um sinal dos tempos que estão aí e dos que ainda hão-de vir. 2004 deixa-me com alguma amargura, cresceu a falta de respeito para com muitos políticos, um certo desinteresse, a sensação de que os caminhos da vida pública estão minados de interesses, redes de interesses, negócios obscuros, processos judiciais adulterados, jornalismo feito de misérias. Em 2004, a Europa desiludiu-me, com a sua mancha de burocratas e gente menor, cedendo a todas as pressões, incapaz de transformar a "abstracção europeia" numa cultura responsável e indispensável.

Em 2004 descobrimos também o outro lado do populismo através de um primeiro-ministro visivelmente incapaz de ser e de parecer primeiro-ministro. Que sucumbiu a quase todas as armadilhas que montou para si próprio, pensando que estava a salvo do escrutínio permanente da opinião pública, da Imprensa e dos seus adversários. Não é claro que 2005 nos traga outro primeiro-ministro, mas, se for este, se Santana Lopes ganhar as eleições, espero, mas duvido, que tenha aprendido a lição. A Direita tradicional, em aliança, desiludiu bastante. Foi um ano de desistências, de retiradas estratégicas, de interrupções. O tempo julgará Durão Barroso, se alguma vez Durão Barroso regressar para se sujeitar a esse veredicto e à opinião dos que o apoiaram quando era difícil apoiá-lo. 2004 não foi um ano bom para a opinião independente. Nenhum período de ressentimento o é, mas assistimos a uma verdadeira manobra para encostar à parede aqueles que não assinavam de cruz e não eram "aliados orgânicos" do poder ou da rua. Falou-se demasiado em traição, em coisas rasteiras e indignadas. O ressentimento em nome do poder e da sua conquista inquinou o debate político, mostrou a face mais miserável de gente até insuspeita. O ressentimento mostrou que o exercício do poder se transforma numa palhaçada e que o desejo do poder constitui, em certas circunstâncias, uma ameaça. Nesse meio, florescem os sacerdotes capazes de tudo para subir ao poder e para aparecer na pantalha da televisão. Respirou-se mal.

Há muito tempo que não havia tanta gente com vontade de começar o novo ano. É um direito humano.

P.S. - Não, eu não discuto a grandeza ou a existência de Deus por causa da tragédia asiática. Não desvalorizo os seus sinais nem os considero uma ameaça. O que a tragédia me sugere é isto nada. Nada a não ser a desolação e a morte e a necessidade de actuar rapidamente. Também não faço comparações. Limito-me a assinalar que, no meio das notícias sobre a catástrofe, a televisão passou entrevistas com turistas portugueses (certamente gente famosa), perguntando-lhes se iam anular as férias na Tailândia ou adiá-las para Março. Nessa altura, a contabilidade ia em 30 mil mortos. Perguntas de merda. Gente de merda.

Jornal de Notícias, 30 de Dezembro de 2004