outubro 28, 2004

Eles têm o que merecem

O Governo de Pedro Santana Lopes não teve a sua aura protectora na Imprensa. O chamado "estado de graça" que se atribui a quem chega a São Bento cheio de vontade de governar.

É provável que a Imprensa lhe tivesse sido desfavorável mesmo noutras circunstâncias ou noutro momento de confronto. A invasão do Iraque instituiu uma ruptura chocante entre a Esquerda e Direita: mas, mais do que entre classes ideológicas, entre a Imprensa e os políticos de Direita, que deixaram de estar a salvo no combate político estrito para passar a ser alvos preferenciais numa disputa que tinha a guerra como pano de fundo. Nesse contexto, a Imprensa tomou opções que seriam impensáveis noutras circunstâncias. Um banho de Esquerda no Poder irá reequilibrar as coisas.

Mas, mesmo concedendo que "as circunstâncias" são, na Imprensa, desfavoráveis à Direita (não o digo escandalizado), o estado de graça natural a um novo Governo dificilmente teria chegado a estes gabinetes de São Bento. O país soube, com Guterres, o que era governar ao sabor da opinião pública (ou do que iria ter impacte na opinião pública) - desde a polémica das SCUT à taxa de alcoolemia, da questão de Barrancos à política das "pontes", o país aceitou a intenção do diálogo mas explorou as fraquezas dessa dependência mediática.

Ora, governar não é conquistar simpatias. Bagão Félix não deixou de dizer o que quer dizer e, vamos lá, mantém (com os sindicatos e a Imprensa) uma relação de guerrilha em que continua a ser respeitado. A ideia de que é preciso ter apoio popular para proceder às tarefas mais exigentes do Governo é um princípio muito aceite na América Latina onde, durante anos, os pequenos messias, os generais fantasma de García Márquez, os os cruéis ditadores de Vargas Llosa, se esforçaram por exercer a sua tirania não apenas em nome do povo (que, a espaços, aprecia algumas tiranias), mas também dos seus interesses. O povo gosta do cenário, sim, mas não é eternamente parvo.

Havendo neste Governo ministros que mereciam mais do que o benefício da dúvida (como Bagão Félix, Luís Filipe Pereira, Graça Carvalho, António Mexia ou Daniel Sanches), não se compreende como pôde o seu conjunto mais visível ser tão desastroso e inábil a lidar com a Imprensa.

Seja como for, não é de Imprensa (nem de "boa Imprensa"...) que este Governo tem um défice - é de Governo.

As pequenas questões multiplicadas ou ampliadas por uma Imprensa claramente hostil e a quem a figura de Pedro Santana Lopes é antipática, não são senão obstáculos à actividade fundamental de um governo: tomar decisões, ultrapassar o nível da resposta mais imediata aos problemas de gestão (como essa palpitante hipótese de os professores irem assessorar juízes). Falta, à sociedade, a percepção de um trabalho silencioso e discreto, amadurecido e pouco dado a confrontos com o anedótico e o tangível. Esse trabalho chama-se, de facto, salvo erro, governar. Não se trata de gerir a conta corrente. Trata-se de inspirar confiança, que é uma coisa que raramente se consegue com piruetas dadas nas páginas dos jornais. É a vida. Nada que não soubéssemos.

Jornal de Notícias - 28 de Outubro de 2004