outubro 21, 2004

A opinião contrária

Da ida do ministro dos Assuntos Parlamentares à audiência da Alta Autoridade para a Comunicação Social resulta uma frase que o beneficia largamente, ao mencionar que as críticas que fez a Marcelo se inserem "no combate e na normal vida política do país". Só por isso, devíamos elogiá-lo. Em tudo o resto, ou quase, devíamos censurá-lo. O assunto, que parecia já enterrado, voltou por mérito do ministro. Vamos a ele.

Um liberal à moda antiga acha que quem se mete na política deve estar preparado para dar e levar (e que o cidadão deve estar a salvo do poder geralmente arbitrário do Estado e das corporações). Portanto, que o ministro tenha reagido às críticas de Marcelo, parece-me normal. O problema está na muito particular visão que o ministro - e, por extensão, o Governo - tem do comentário político, do direito à opinião e da legitimidade para fazer críticas à actuação governamental. Neste último aspecto, então, parece-me absurdo que faça depender "de ir a sondagens" o direito de exercer a crítica. Justamente, as críticas mais sérias, as críticas que deviam ser mais escutadas, são as críticas que vão contra o sentido das sondagens - as que seguem as sondagens também são importantes, evidentemente, mas não têm a mesma força. A unanimidade é uma coisa burra. Estarmos todos de acordo - dentro do PSD, fora do PSD - seria uma coisa desastrosa. Seria absurdo que, para exprimir uma opinião discordante, tivéssemos de pedir autorização aos sacerdotes ou aos generais do partido, do Governo, da opinião pública, aos mandarins da universidade, do "politicamente correcto" ou do Bloco de Esquerda, à Quercus ou ao senhor patriarca de Lisboa. A opinião não tem nada a ver com a opinião pública. Eu prezo especialmente a opinião que vai contra a opinião pública. E a coragem daqueles que não se submetem à opinião maioritária.

O ministro Gomes da Silva acha que Marcelo é, por si só, uma força oculta dentro do PSD. É assunto do PSD. Ora, o PSD, nesse caso, se o partido estivesse de acordo com o princípio de que só pode fazer críticas "quem vai a sondagens", devia expulsar o professor das suas fileiras ou obrigá-lo a calar-se. Mas não saltava para a rua a aborrecer-nos.

Segundo percebi pela leitura dos jornais, o ministro acha que Marcelo disse várias mentiras: que "a formação do Governo foi uma manta de retalhos", que "há falta de coordenação" no Governo, que o Governo teve "uma actuação desastrosa" no caso da Galp, ou que, finalmente, a autorização da "ponte" para a função pública, no dia 4, foi uma coisa aviltante. Essa confusão entre "mentira" e "discordância" parece-me aflitiva. Alguém diz num jornal, por exemplo, que as gravatas do senhor director-geral X são hediondas; o senhor director-geral, em vez de reflectir sobre a adequação das suas gravatas (ou, mais prosaicamente, de responder que "hedionda é a tua mãe"), desata a pedir que despeçam o cronista ou que contratem o especialista do Continente em gravatas para que ele estabeleça "o contraditório".

Mas o mais grave de tudo isto, em meu entender, é a ideia de que o Governo tem de ter quem o defenda, nos jornais e na televisão. Não lhe basta ter o Parlamento, a Maioria, as conferências de Imprensa, as provas dadas, as obras públicas, as comunicações ao país, as decisões dos ministros - não: como se não soubesse ao que vinha, o Governo quer também ter, por decreto, quem o defenda nos jornais, na "Caras" e na rua. Que faça pressões sobre a TVI, eu compreendo; basta um telefonema ao dr. Paes do Amaral. É normal. O pior, para um liberal à moda antiga, é tudo o que se esconde (e mostra) com esse gesto.

Jornal de Notícias - 21 de Outubro de 2004