outubro 11, 2008

Recordações do Oriente

Deixo para trás Timor, o avião sobrevoa o mar, que é azul, brilhante, tranquilo e plácido com o seu brilho de prata. Se os mares do Sul existem, é aqui – a duas horas de voo sobre o Grande Recife de Coral. Luís Cardoso, escritor timorense (recomendo vivamente o seu romance mais recente, Requiem para o Navegador Solitário) diz que o Grande Recife é uma das provas da existência de Deus – com aquela grandeza ultramarina. Imagino-o a esta distância, porque, visto do céu, sempre me pareceu uma peça de filigrana subaquática, iluminada por todas as cores. Deixo para trás Timor, as varandas das florestas de Ermera, o verde de Aileu, a estrada que me desvendara a madrugada de Lospalos, as algas magníficas de Baucau, a neblina das montanhas. Quinze dias antes o avião pousara em Díli e eu saíra a custo, a meio de uma convalescença que a viagem entre Amesterdão e Singapura interrompera – mas aquela humidade do Oriente obrigara-me a retomar a vida inteira. O perfume dos cafezais. As ravinas inclinadas sobre o interior da terra. As árvores, grandiosas.

Ainda quero ir a Flores, a ilha mágica e desconhecida, um território indonésio perdido no meio de outras ilhas mágicas e desconhecidas – a nós, portugueses, não nos calhou tudo, felizmente, porque teríamos estragado muito, ou esquecido mais. Mas, antes de pensar nisso, o avião, com três horas de voo, aterra em Bali. Tomo medicamentos de tantas em tantas horas, e a fila dos passaportes é imensa, o atendimento é lento; acabam de chegar os voos do Ocidente com turistas que, daí a pouco, encherão as ruas de Denpasar, os restaurantes de Legian, Kuta e Tanah Lot, as praias que limitam a capital. Só tomo os comprimidos quando consigo um táxi numa fila ordenada do aeroporto. E então é o fio do equador que toma conta de tudo: do céu, dos perfumes das ruas (aquele cheiro de sambal e kecap, de ervas aromáticas, de arroz frito, de nasi goreng). Árvores em todo o lado, céu rosado do anoitecer. Quando chego ao hotel adormeço logo e durmo (há um resto de febre que vem de Díli) por dez horas. Até hoje, nunca mais consegui.

Nos dias seguintes, a ilha foi-se revelando aos poucos. Não tendo optado pela praia, perdi-me por estradas das montanhas, entre Tabanan e Ubud, Bangli e Tirtagangga, embora a ideia fosse visitar Singaraja, a cidade no outro extremo do território, a primeira capital da ilha. Templos iluminados pela luz tranquila da tarde, ao lusco-fusco. Restaurantes perdidos em estradas secundárias, com toalhas de plástico, onde se comem os melhores arrozes – temperados ou apenas de companhia –, bakso (a sopa das sopas), bubur injin, as cervejas locais, leves, apetecidas. Passados todos estes anos, recordo Bali como «a ilha da natureza», o jardim antigo onde as pessoas se sentam diante das árvores apenas com o propósito de as admirar. Esse respeito comove-me. E a delizadeza dos balineses.

Provavelmente, não vem agora ao caso, a minha vida podia ter mudado em Bali. Nunca antes fora tocado pelo vento do Índico daquela forma. Em 1585 os portugueses teriam chegado à ilha – sim, antes dos holandeses – ao ponto que é hoje a península de Bukkit, e imagino a aparição, diante dos navegadores, daquele corpo imenso de terra arborizada, coroado pelas montanhas e pelo pico do Agung, ao fundo, rodeado de nuvens. Tenho pena quando penso em Bali. Guardo uma ternura disparatada por Bali, pelos seus bares de madeira e música suave, até pelas estradas escondidas rente aos lagos. Sonho que um dia voltarei às sombras do templo de Besakih e àquele vento do Índico.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Agosto 2008

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