O segredo do Mar
Não sei se conhecem Amyr Klink. A primeira vez que vi o seu rosto elegante, aquela sombra de nostalgia a pairar, foi num documentário exibido na televisão brasileira (incluído na série Documenta Brasil), um momento extraordinário de revelação – de Paraty, onde vive, à Antárctida ou ao Pólo Norte, Amyr Klink é mais do que um navegador que procura percorrer distâncias: ele leva-nos a imaginar o que esse percurso significa. Com o seu navio Paraty preso num banco antárctico, Klink esteve cerca de um ano naquelas regiões, aguardando o tempo certo de regressar a casa. Pensei muitas vezes nessa temporada no Inferno – até que a visão dos monstros gelados do Sul me pareceram sublimes, uma espécie de convite à reflexão, ao abandono, ao silêncio puro e absoluto, apenas cortado pelos ventos que sopram durante a noite ou às horas escuras do dia.
No entanto, embora essas viagens extremas sejam muito fascinantes e tenham cada vez mais apeciadores, a minha preferência vai para um pequeno livro, Cem Dias Entre Céu e Mar, onde relata a experiência magnífica que foi atravessar o Atlântico Sul num barco a remos, entre a Namíbia (Lüderitz) e o Brasil (Salvador, na Bahia). Nunca percebi o que leva um ser humano a atrever-se a esse tipo de aventuras, mas depreendo que haja muito mais do que a própria aventura em si mesma, muito mais do que a resposta a um desafio puramente físico – no limite do «desporto». O livro de Klink é de uma simplicidade comovente, limitando-se a narrar os episódios centrais da viagem e dos seus preparativos; mas ao lermos a descrição das noites do Atlântico, da chegada miraculosa (ou salvadora, pelo menos) às águas geladas de Santa Helena (a ilha onde Napoleão cumpriu o seu exílio, um pouco acima de Tristão da Cunha – o meu arquipélago de eleição), das conversas via rádio com comandantes de navios que enfrentam a solidão dos mares, ou dos encontros com uma baleia certamente descendente de Moby Dick, somos levados para uma dimensão mais profunda, tão escura como a absoluta escuridão daa águas, tão densa como as neblinas que atravessam ou separam continentes. Mas, sobretudo, tão surpreendente como as narrações dos viajantes antigos, de quando não havia sistemas de comunicação de satélites.
Calhou, depois de ter lido Cem Dias Entre Mar e Céu, lembrar-me do meu próprio percurso pelo litoral brasileiro – afinal, eu tinha vivido cerca de dois anos a um passo da Praia da Espera, onde, em Setembro de 1984, Amyr Klink regressou dessa sua viagem que o trouxe da Namíbia aos trópicos da América. É uma praia relativamente tranquila, de águas azuis, em Camaçari – onde Klink dividiu duas sardinhas com um pescador que não sabia onde era essa «praia» chamada «África» (de onde tinha regressado o seu inesperado conviva).
Ainda hoje, passado muito tempo da leitura dos livros de Amyr Klink, recordo as imagens de territórios que ele atravessou, para lá de Ushuaia e do Canal Beagle, para lá do Cabo Hornos, esse promontório quase flutuante onde se marca o abraço do Atlântico e do Pacífico diante do negrume da Antárctida, ao largo e à vista.
Aventureiros como Klink eram, nos anos oitenta e noventa, os últimos viajantes solitários do nosso tempo – eles conheceram os limites, partilharam os seus medos com o silêncio dos mares, encontraram o seu destino entre o destino das coisas, e compreenderam que viajar significava, sempre, conhecer. Conhecer um aroma, uma impressão ligeira, uma luz, um ruído. Aprendi com as suas viagens (e com as narrativas de Jack London, ou Melville, ou Coloane) que o segredo do mar não é o seu retrato como uma sombra de cartolina. É, antes, o demónio da aventura que nunca nos larga.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2008
No entanto, embora essas viagens extremas sejam muito fascinantes e tenham cada vez mais apeciadores, a minha preferência vai para um pequeno livro, Cem Dias Entre Céu e Mar, onde relata a experiência magnífica que foi atravessar o Atlântico Sul num barco a remos, entre a Namíbia (Lüderitz) e o Brasil (Salvador, na Bahia). Nunca percebi o que leva um ser humano a atrever-se a esse tipo de aventuras, mas depreendo que haja muito mais do que a própria aventura em si mesma, muito mais do que a resposta a um desafio puramente físico – no limite do «desporto». O livro de Klink é de uma simplicidade comovente, limitando-se a narrar os episódios centrais da viagem e dos seus preparativos; mas ao lermos a descrição das noites do Atlântico, da chegada miraculosa (ou salvadora, pelo menos) às águas geladas de Santa Helena (a ilha onde Napoleão cumpriu o seu exílio, um pouco acima de Tristão da Cunha – o meu arquipélago de eleição), das conversas via rádio com comandantes de navios que enfrentam a solidão dos mares, ou dos encontros com uma baleia certamente descendente de Moby Dick, somos levados para uma dimensão mais profunda, tão escura como a absoluta escuridão daa águas, tão densa como as neblinas que atravessam ou separam continentes. Mas, sobretudo, tão surpreendente como as narrações dos viajantes antigos, de quando não havia sistemas de comunicação de satélites.
Calhou, depois de ter lido Cem Dias Entre Mar e Céu, lembrar-me do meu próprio percurso pelo litoral brasileiro – afinal, eu tinha vivido cerca de dois anos a um passo da Praia da Espera, onde, em Setembro de 1984, Amyr Klink regressou dessa sua viagem que o trouxe da Namíbia aos trópicos da América. É uma praia relativamente tranquila, de águas azuis, em Camaçari – onde Klink dividiu duas sardinhas com um pescador que não sabia onde era essa «praia» chamada «África» (de onde tinha regressado o seu inesperado conviva).
Ainda hoje, passado muito tempo da leitura dos livros de Amyr Klink, recordo as imagens de territórios que ele atravessou, para lá de Ushuaia e do Canal Beagle, para lá do Cabo Hornos, esse promontório quase flutuante onde se marca o abraço do Atlântico e do Pacífico diante do negrume da Antárctida, ao largo e à vista.
Aventureiros como Klink eram, nos anos oitenta e noventa, os últimos viajantes solitários do nosso tempo – eles conheceram os limites, partilharam os seus medos com o silêncio dos mares, encontraram o seu destino entre o destino das coisas, e compreenderam que viajar significava, sempre, conhecer. Conhecer um aroma, uma impressão ligeira, uma luz, um ruído. Aprendi com as suas viagens (e com as narrativas de Jack London, ou Melville, ou Coloane) que o segredo do mar não é o seu retrato como uma sombra de cartolina. É, antes, o demónio da aventura que nunca nos larga.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2008
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