junho 03, 2006

O alto patrocínio da Tasquinha

Pequenina, a Tasquinha da Adelaide, em Lisboa, é um reduto de boa cozinha portuguesa. Muito pequenina. Intimista, como hoje se diz. Mas, em nome da sua boa comida, tudo se perdoa.

LEMBRAM-SE do Alencar? Esse Alencar de 'Os Maias', precisamente? Pois eu lembro, porque tinha frases inesquecíveis. Uma delas é o primeiro de um dos seus poemas a Elvira, escrito nas penumbras fatais de Sintra, a romântica Sintra de outrora: "Abril chegou, sê minha!" E logo ali um alvoroço no deal­bar na Primavera, um sinal de adultério promissor, só de fitar a verdejante Sintra que refrescava os lisboetas que iam lá para uma temporada. Pois uso o verso para adaptá-lo: "Junho chegou, sê minha!" Refiro-me à fresquinha dos finais de tarde e à Rua do Patrocínio, paredes meias com o centro de Campo de Ourique (ou seja, com a Ferreira Borges ainda arborizada e com a passarada do Jardim da Parada um pouco mais distante), pertíssimo de quem sobe da Estrela para o bairro onde Fernando Pessoa viveu parte da sua vida. Ora, os tons crepusculares dessas ruas abrem o apetite a quem passou o dia labutando.

Há em Campo de Ourique, ainda, motivos para passeio e para que nos demoremos aqui e ali (vetustas lojas, cafés de antiga­mente, retrosarias, drogarias, tudo o que quisermos) - e para que terminemos num jantar íntimo na ínti­ma e intimista Tasquinha da Adelaide. Como não tem estacionamento à porta, recomendo vivamente o passeio, que nos poupará trabalhos adicionais. A porta, de vidro, abre para uma salinha minúscula onde, logo de frente, cabe uma cozinha minúscula. Mas nada de alarme. É pequena, pequenina, mas maneirinha, bem arrumada e saborosa - refiro-me à Tasquinha da Adelaide, evidentemente. A clientela, feita de famílias arrumadas, casais que repetem até à exaustão os florilégios de 'O Amor em Visita', turistas que leram o 'The New York Times' (que gostou muito do lugar) ou as revistas brasileiras de viagem, dis­tribui-se por cerca de vinte e tal mesas simpáticas onde são servidas coisas como paletilha de cordeiro (arrancada ao forno, crepitante, para duas pessoas), rojões à transmontana (bem fritos, com batatinhas, castanhas e grelos salteados - exuberante de coles­terol do bom), feijoada de búzios (não provei), arroz de pato (tostadinho, de grão solto e pato muito bem cozinhado antes de entrar no barro para cobrir-se de arroz), perna de borrego com feijoca (ideal para quem prefere pratos de baixas calorias e nada de hidratos de carbono), bacalhau espirituoso, ou linguadinhos fritos com arroz de grelos (ambos muito bons).

Registemos ainda, para um almoço recente, a contribuição de umas gambas (gigantescas!) fritas em azeite e uma dose conveniente de alhos esmagados, servidas com arroz branco, além de um pastelão de ovo com batatinha às rodelas, familiar de uma 'tortilla' espanhola acrescentada de salsa e de rodelas de salpicão, de uma salada de peito de pato ou de uma outra de mussarela. Se o apetite está ainda estaciona­do a níveis críticos, recomendo a sela de borrego ou o pernil, ambos servidos na travessa de barro com superlativas batatinhas de forno e grelos salteados, ou a simplicidade que chega da grelha sobre o carvão: lulas, polvo (servido à lagareiro), robalo, dourada, bife do lombo ou entrecosto.

Nada que envergonhe a cozinha de Dona Adelaide, à vista de todos, sem truques e sem vontade de enganar. Na companhia de tudo isto, uma carta de vinhos aceitável e munida de tintos de referência (a que, no entanto, faltam brancos estivais que nos ajudem a suportar os calores da temporada - sim, eu gosto bastante de vinhos brancos, e temos meia dúzia deles que podem fazer corar de pudor os mais afoitos), o que antecede a tarte de Tatin (quente, de preferência, com a bola de gelado), os dois bolos de chocolate (um, de renome na casa, feito ali, sem farinha, puro chocolate; outro, antecedido da palavra "merengue", em vários pisos de bolachinha e de diferentes chocolates), a tarte de framboesas ou de avelã, além do 'cheese cake', que tomou de assalto todos os nossos cardápios.

É nesta altura que as portas da Tasquinha (onde se é sempre bem aten­dido por pessoal muito simpático) se abrem para a noite: mais uma voltinha a pé para ajeitar as várias camadas que assentaram no estômago. Uma visita que vale a pena. Pequenina, a Tasquinha da Adelaide é um reduto de boa cozinha portuguesa. Muito pequenina. Intimista, como hoje se diz. Mas, em nome da sua boa comida, tudo se perdoa.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 60
Vinhos Brancos: 20
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 20
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Levar Crianças: Não
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao jantar
Preço médio: 35 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM

TASQUINHA DA ADELAIDE
Rua do Patrocínio, 70
1350-231 Lisboa
Tel: 21 3962239
Fecha aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 3 Junho 2006