junho 30, 2005

Minudências à vista

O eng.º João Cravinho, que tem aquele ar simpático e tranquilo de quem já passou por vários governos e várias orientações, reconhece que é um pouco frustrante verificar-se, agora, que as promessas eleitorais não têm nada a ver com a acção do Governo. A afirmação é igualmente simpática - não para o Governo, mas para as boas almas que gostam de invocar a coerência e os princípios éticos. É simpática diz o essencial, o mais evidente e garante que, no PS, há quem ainda se lembre da campanha eleitoral ou das suas promessas.

Convém, neste ponto, ser ligeiramente mais honesto do que o eng.º João Cravinho. Na verdade, o primeiro-ministro, José Sócrates, não prometeu grande coisa, durante a campanha eleitoral. Ele passeou pelo país aquele charme aguardado, feito de (dizem os analistas mais insuspeitos) teimosia e (dizem as colunas de sociedade) firmeza. Além de percorrer o país nessa figura, o eng.º Sócrates anunciou um conjunto de ideias coerentes, modernas e atraentes, e contou com dois aliados de peso. Em primeiro lugar, o primeiro-ministro de então, Santana Lopes, apostado em fazer tudo para ser odiado pelos eleitores, cometendo erro atrás de erro, vitimizando-se e chorando. Depois, a LPM, uma agência de comunicação laboriosa e inteligente, que tudo fez para que Sócrates fosse amado pelos portugueses ou, pelo menos, para que os portugueses estivessem atentos à jovem cabeça grisalha do candidato. Resultou. Um dos conselhos que deram a Sócrates foi muito simples tendo em conta que os portugueses não gostam de reformas, mudanças, riscos e apostas, o melhor é voar baixinho. Sócrates voou baixinho. Fez bem. Não por ser assim que se ganham eleições, mas porque se viu claramente que os portugueses andavam fartos de gritaria.

O que prometeu Sócrates e o que os especialistas pediram a Sócrates para prometer? Nada. Tirando o choque tecnológico, aulas de Inglês no Ensino Básico e mais umas minudências, as promessas ficaram reduzidas a quase nada. Churchill prometera sangue, suor e lágrimas - mas os tempos são outros. Os portugueses não estão para isso.

Depois das eleições, no entanto, chegado a S. Bento, o primeiro-ministro descobriu a dramática existência do défice. O défice é um monstro que assola os portugueses e os seus governos.

Os governos querem ser simpáticos e generosos querem aumentar os salários da função pública (o seu eleitorado), alargar os períodos de férias, decretar pontes, aumentar os anos de escolaridade, tornar humanas as pensões sociais, comprar frotas de carros de serviço e atribuir licenças de operadores de telefones. Mas, entretanto, surge o défice. Tirando o nefasto período do dr. Salazar, mais alguns anos de dr. Cavaco, o défice fez sempre parte da moldura do Estado português, senão mesmo da sua fotografia.

A opinião publicada e a opinião pública começam a manifestar agora a sua decepção em relação ao Governo de Sócrates. Fazem mal. O primeiro-ministro limita-se a aplicar a regra é preciso cortar no défice. Não vale a pena dizer que "a rua" ameaça a maioria absoluta (porque "a rua" se tem limitado, aliás, ao seu discurso chinfrim e sem sentido) e que os caminhos são imprevisíveis até 2009, e que o Governo perderá as presidenciais e as autárquicas. O primeiro-ministro gostava de fazer mais coisas. Mas tem o défice. Nem precisa de desculpa. Qualquer contabilista o dirá. Este discurso, simples e simplório, pobre, resignado, vai ser escutado durante dois ou três anos. Tem, a justificá-lo, o voto dos portugueses. Foram eles que escolheram a resignação e não ligaram às minudências. Talvez a despesa pública aumente e o défice diminua, o que parece um absurdo. Mas, na política recente, já se viram coisas mais absurdas, e que não deixaram de ser verdadeiras.

Jornal de Notícias, 30 de Junho 2005