julho 22, 2004

Fumar, não fumar

Quando o Estado se mete a ser moderno, dá asneira. O Estado é uma personagem vetusta, com cabeleira postiça, anterior à penicilina e que escreve em resmas de papel almaço - quando se veste de boca-de-sino e lycra, a tremer ao som do hip-hop, parece uma velha gaiteira, inadequada para ser apresentável entre gente decente. Digamos que, em meu entender, deve conservar uma certa pose, a de quem não faz aeróbica nem vai a Vilar de Mouros acampar entre pulgas e lagartixas participando em cerimónias rituais para fumar haxixe.

O Estado está mal habituado. Frequentemente é assaltado por gente inteligente demais que pensa que o resto do povo merece tratamento. Na maior parte das vezes, tem razão - mas não tem prudência. Os "grandes líderes" foram sempre assim: à inicial comiseração pelo povo seguiu-se um amor profundo, uma dedicação arroubada e, depois, lentamente, uma indiferença e desconsideração que se vão transformando em desprezo e repulsa. Façam a história dos "grandes líderes" e verão. Por isso, o Estado está mal habituado: deixados à solta dentro das repartições (refiro-me às "altas repartições", onde se discute o futuro das nações e o bem do povo em termos abstractos), essas finas inteligências estão destinadas ao mais cruel dos paternalismos. E, mais um passo (felizmente impossível hoje em dia), ao exercício de pequenas ou grandes ditaduras. Diante dessas finíssimas inteligências, chego a preferir até os que saem de cena, murmurando que o país não os merece e que está mal frequentado e cheio de refugo, à beira de se transformar num pântano.

Ora, é claro e pacífico, o Estado deve cuidar da saúde dos cidadãos e não me importo, como fumador, que lance campanhas destinadas a combater o tabagismo, ou que se sirva da enormidade de impostos pagos pelos fumadores para financiar essas campanhas. Como fumador, ainda, aceito as regras que me são impostas, às quais acrescento ainda outras, mais pessoais e mais rígidas, de modo a não incomodar ninguém. Mas o proibicionismo em voga irrita-me bastante. Uma das campanhas que o Estado português, através de um chamado Instituto da Juventude, promove na televisão, mostra desde há anos uma jovem andando de metro, frequentando lojas de roupa, sentada nas esplanadas, aparecendo escrito que "gosta de moda" - e "não fuma". Ou seja: essa ideia de "rapariga moderna" que consome a mesada em roupa e que tem aquele ar de quem não faz uma única leitura mas que frequenta a Mango ou a Bershka, é como que uma previsão do facto de não fumar: logo, não fuma. O anúncio, que continuo a ver na :2 e na RTPi, é de uma irresponsabilidade letal e não deixa de ser cómico, podendo ser lido de maneira diferente: fulana, 17 anos, faz sexo em grupo, violenta os animais, maltrata a avó, gosta de moda, desobedece aos pais - não fuma. O leitor imagina, certamente, a quantidade de obscenidades de que somos capazes quando nos pomos a delirar. O delírio pode continuar: Fulana, 17 anos, faz sexo inseguro, insulta os professores, é má estudante, gosta de moda, rouba dinheiro aos pais, não toma banho - não fuma. Ou: Fulana, 17 anos, não é careta, frequenta páginas obscenas na Internet, espeta alfinetes nos gatos - não fuma. Podemos enviar ao Instituto da Juventude várias sugestões originais. Já há tempos, quando lançou uma campanha sobre o "cartão jovem", o tal instituto usou um rapaz saído de uma "raveparty", enumerando as coisas que podia comprar com o cartão: discos, roupa, bilhetes para espectáculos, tudo o que lhe passa pela cabeça - excepto um único livro que fosse.

Basicamente, o Estado deve conservar alguma seriedade e ter algum bom senso. Pôr os fumadores a rir não parece um bom caminho. Eu defendo que não se deve fumar, mas não gosto que transformem a rapaziada toda em idiotas chapados.

Jornal de Notícias - 22 de Julho de 2004