julho 01, 2004

Conspiremos, portanto

Eu sou adepto de teorias da conspiração duas vezes ao ano. Uma é pelo Natal, quando desconfio que a quadra foi planeada por uma grande corporação de lojistas e que visa espoliar-nos das nossas economias. Outra, é quando Durão Barroso e Santana Lopes parecem amigos.

Sei que a situação é séria (o país, etc.), mas não resisto a imaginar que Durão Barroso decidiu deixar Santana Lopes com um problema nos braços, como uma vingança felina, enquanto troca de nome no areópago europeu. Seja qual for a decisão do presidente da República em relação ao novo Governo - eleições antecipadas ou designação de um novo primeiro-ministro a sair da área do PSD -, Santana Lopes fica com um problema para resolver. Para Santana, indiscutivelmente, o melhor seriam eleições gerais depois de hoje ser designado presidente do partido, com ou sem congresso (certamente com congresso, está bom de ver: é sempre uma ajuda das televisões).

Ser designado primeiro-ministro por Jorge Sampaio será sempre um problema: o actual presidente da Câmara de Lisboa não gostará de ficar refém de um pacto de estabilidade com a República, com o presidente ou com os "pilares do regime" - desde o governador do Banco de Portugal às políticas de consolidação orçamental que estão já definidas pelo Governo anterior e por uma ministra que detesta (Manuela Ferreira Leite). Também é verdade que Santana Lopes não é político para restrições orçamentais ou obediência a pactos que não assinou nem discutiu. Ser nomeado primeiro-ministro, coisa que nunca foi propriamente a sua ambição, com a cumplicidade de um presidente de Esquerda e de uma maioria de dois anos na Assembleia não é um projecto de vida para Santana Lopes. Pode ser que o aceite, se for designado, mas não é a sua ideia de exercício de poder.

Santana Lopes - ah, deixem-me conspirar - preferiria ir a eleições, falar em comícios, reunir tropas, debater na televisão, organizar congressos, desafiar os adversários para campo aberto, definir bandeiras e objectivos, combater livremente diante do eleitorado. A palavra "estabilidade" não é parte essencial do seu dicionário, tal como a banalidade dos "consensos". Ele não conhece o exercício do poder sem nomear adversários claros, o fio da navalha que o separa do precipício, a lista de exclusões que gosta de estabelecer. Podemos perguntar-nos se é uma personalidade como esta que queremos para primeiro-ministro - mas isso é outra conversa. Santana é o bloquista da Direita que conhece os barões do partido e que se delicia a vê-los entrar em desespero ou fervilhar de indignação e de enxaqueca.

Indo a eleições, coisa que só se saberá depois de ser nomeado presidente do PSD e de Jorge Sampaio chegar a alguma conclusão, Santana estará no seu terreno. Primeiro, desenhará a linha do deserto, ou seja, não o vejo a aceitar em pleno a herança de Durão Barroso. Depois, num confronto directo com Ferro Rodrigues, estará como peixe na água. Pagava para ver.

O PSD das províncias, do Portugal profundo, engraçou com ele há muito - aprecia-lhe os advérbios, o penteado e o descaramento. Se fosse esse PSD a eleger o presidente do partido, teria sido Santana o sucessor de Cavaco, e não Fernando Nogueira.

Ferro Rodrigues pede eleições antecipadas. É o seu dever, a sua obrigação - e o seu destino. A Esquerda não poderá andar de cabeça levantada se não o exigir. Mas Ferro Rodrigues, fragilizado por opositores que pediram escusa por breves momentos, não conte com o empurrão do resultado das europeias: disputar com Santana não é a mesma coisa do que trocar adjectivos com o dr. Durão Barroso. Conspiremos.

Jornal de Notícias - 1 de Julho de 2004