julho 15, 2004

A tentação dramática

A ideia de que a estabilidade é um valor absoluto - e de que poderia ser obtida sem eleições gerais - não tem pés e nunca teve cabeça. Se, por um lado, é verdade que, a partir de agora, os discursos da Esquerda e da Direita serão muito mais radicalizados (a menos que uma eventual entrada de José Sócrates em cena possa inverter a esquizofrenia do PS), não é menos verdade que o ambiente de crispação absoluta em que o país vivia só poderia ser resolvido com a continuidade do mandato de Durão Barroso ou, como mandava o bom-senso, a partir de eleições.

Escrevi outro dia que a decisão do presidente da República não foi uma vitória de ninguém em especial.

Mais: que um liberal à moda antiga não pode ficar contente - um liberal à moda antiga, ou seja, alguém que preza a liberdade e que não tem tentações paternalistas em relação ao país ou às suas decisões.

Mantenho e insisto.

Inesperadamente, e bem vistas as coisas, a decisão do presidente acaba por constituir uma interessante vitória do PS. Por dois motivos:
1) porque dá tempo ao PS para se organizar num período de dois anos que, se não me engano, serão de campanha eleitoral permanente;
2) porque Ferro Rodrigues ou perderia as eleições em confronto directo com Santana Lopes, ou seria obrigado a uma coligação pós-eleitoral que o deixaria refém dos seus adversários dentro e fora do PS.

É compreensível o período de luto dramático por parte da Esquerda, bem como o foguetório que se seguiu ao anúncio presidencial. Ele estava anunciado desde as comemorações do 25 de Abril e era previsível como uma das consequências da radicalização do seu discurso contra a pouca apetência de Durão Barroso para motivar o seu eleitorado, mas também para gerir a apatia de governabilidade em que o país vivia. Esta reacção indignada da Esquerda (com a ideia de que o 25 de Abril acabou, defendida por José Saramago, ou de que Sampaio é o presidente da Direita, oficializada por Ana Gomes, sem falar de outros ditirambos mais trágicos), é paternalista e despropositada, tanto como a hipocrisia da Direita que vê na dupla Santana/Portas o díptico salvador da Pátria. Muitos dos que prometeram exilar-se em caso de Santana Lopes chegar ao Governo estão agora de férias - alguns falam de "intervenção cívica", que é um eufemismo para agitação de rua; outros imolam-se publicamente, como aconteceu com Ferro Rodrigues. Exageros típicos de almas em ebulição ou apenas transtornadas pelo princípio da realidade; em todos eles é detectável esse paternalismo redentor e a tentação de mostrar ao povo de que lado está a verdade. Acontece que o país tem sobrevivido a todas as crises e, sobretudo, sobrevivido aos seus salvadores mais iluminados. Acontece, também, que a política real (que tem a ver com a conquista e exercício do Poder) é muito diferente da política como ela devia ser para além do bem e do mal. Pacheco Pereira chamava a atenção para a noção hegeliana "do que acontece" como uma inevitabilidade. Nada mais correcto. As coisas seguirão o seu rumo e os dois anos que nos separam das eleições legislativas servirão para uma de duas coisas: ou garantir à Esquerda uma vitória plena em função do desgaste a que será submetido o ainda incógnito Governo de Santana Lopes; ou permitirá à Direita prolongar o mandato ao fim de dois anos de discurso rezinga, dramatizante e populista da Esquerda que promete "intervenção cívica". As pessoas querem a sua vidinha de volta.

De resto, um aparte: as declarações de António Vitorino sobre a sua corrida à liderança do Partido Socialista são um dos documentos mais notáveis para compreender a vida política contemporânea. Em três ou quatro frases, elas resumem uma orientação: Portugal não nos merece, Guterres tinha razão quando enunciou a teoria do pântano, Barroso fez bem em ir-se embora. A lista de emigrados e de estrangeirados continua a crescer. Compreende-se. Ninguém consegue governar esta gente.

Jornal de Notícias - 15 de Julho de 2004