maio 05, 2000

Avenida Brasil

Alguns foram baptizados com nomes que nos são familiares, como Belém e Óbidos. Outros nem tanto, caso de Arembepe ou Parintins. E depois há aqueles destinos absolutamente incontornáveis na imensidão deste país: Brasília, Porto Seguro, Maceió. Por mais dez lugares, assim prossegue a nossa descoberta do Brasil.


Belém, Pará
A CIDADE DOS AROMAS

São quatro da manhã. O paraense que vai buscar-nos ao hotel insiste que devíamos ir até à Ilha dos Papagaios. Não. Vamos de barco para a baía, percorre-mos alguns quilómetros num igarapé, assistimos à passagem dos barcos dos miúdos que vão à escola, uma casa de palafita. Veremos o amanhecer diante do Mer­cado. Porquê tão cedo? Porque a madrugada da grande baía da cidade começa cedo, por volta das quatro da manhã e ainda não revela uma cidade inteira, mas apenas aquilo que resta da Belém ribeirinha de há muitos anos.

As primeiras imagens do amanhecer vão mostrando, aos nossos olhos cheios de sono, uma luz tranquila que cruza os trópicos e as poeiras do céu, as cores de um mundo que devia ser diferente ou apenas desconhecido há quinhentos anos, quando os navegadores entraram na bacia amazónica em busca dos tesouros que Ihes foram fatais - porque não existiam.
Há cidades que respiram mais ou menos intensamente, conforme o viajante que as visita. Parte essencial de Belém está voltada para o Mercado Ver-o-Peso e para a ligação de toda a área à volta do mercado com as águas da baía. Visitá-lo é uma das formas de começar a viagem às margens da Amazónia, cuja proximidade se respira. E há, depois, aquele poema de Manuel Bandeira, cujos versos essenciais são citados por Tocantins no seu belíssimo livro sobre a cidade: "Nunca mais me esquecerei/ Das velas encarnadas/ Verdes/ Azuis/ Da doca do Ver-o-Peso/ Nunca mais." E as "veredas" do mercado são fabulosas: barbeiro, peixe fresco, ervas suspeitas e insuspeitas, afrodisíacos garantidos e a descobrir, frascos de perfume e de venenos suaves, lojas de candomblé e de panos, urubus pegando peixe podre e velhos pescadores caboclos a jogar cartas nas barcaças do porto, gaiolas de papagaio e sementes de guaraná, carne-de-sol e cheirinho de pato no tucupi, jambú verdinho e misturado com o caldo de goma de mandioca e camarão seco.

A Belém de hoje revela um pouco daquilo que é a memória colonial portuguesa do Brasil: arquitectura civil e militar, traçado das ruas e das casas, tudo isso misturando-se com os aromas que vem do interior do Pará, empurrados por ventos imaginários que poderiam vir da Amazónia, para onde estas águas nos irão levar, mais tarde.
Mas há as obras de Landi, o arquitecto de Belém colonial: as fachadas monumentais mas de um rigor luminoso e claro, as portas elevadas, as janelas rasgadas em paredes azuis. Os séculos passam por Belém e devolvem-nos, hoje, os seus fantasmas e as fantasias e Utopias de todos os que fizeram a sua historia. Raramente se sabe que fantasias são essas e de que são compostas. Mas Belém, relativamente afastada dos roteiros do turismo e das visitas de turistas em ferias, não revela imediatamente o que está sob essa penumbra que envolve a cidade ao fim da tarde. É preci­so ir mais longe e aproximarmo-nos do seu coração selvagem, da sua geografia afectuosa. Lugar de chegada de muitas navegações e de muitos caminhos do interior, como aqueles que o misterioso aventureiro e militar Pedro Teixeira percorreu, Belém e a sua baía são também um ponto de partida para qualquer viagem pelo interior norte do Brasil.


Óbidos, Pará / Amazonas
A CURVA DO RIO


A primeira noite de viagem no curso do Amazonas não é propriamente tranquila, porque se espera com alguma ansiedade a primeira luz da manhã, as primeiras imagens da Amazónia. Viajamos num navio-patrulha da Marinha brasileira, o "Pedro Teixeira", e o comandante Biasoli conhece as paragens. E conhece essas primeiras imagens da Amazónia, em chegando a manhã. E elas chegam com a brancura de Óbidos, a primeira paragem no curso do rio.
É uma espécie de segundo ponto de entrada no Amazonas, porque, a partir daqui, a densidade populacional e muito maior e ganha mais importância a cultura cabocla tradicional: casas à beira da agua, em palafita, ou percorrendo pequenos igarapés, cursos de água mais pequenos que encontram o seu destino final nas águas do grande rio.

Óbidos vive, naturalmente, da pesca. Mas sobretudo do comércio com o interior, graças à sua posição estratégica junto do rio. O mercado municipal funciona, se a cheia do rio o permitir, quase todos os dias até ao final da manhã, lembrando que o Pará acaba de seguida. O Forte dos Pauxis lembra a colonização primitiva, de religiosos e militares, erguido sobre as águas naquele que é um dos pontos mais estreitos do seu curso. Chovera durante as duas semanas anteriores, o rio - visto do forte ou do muro junto da prefeitura – brilha de azul às nove da manhã, mas de verdade corre barrento, baço, sombrio.

Os turistas chegam de avião, se chegam: duas companhias aéreas, a Meta e a Penta em aviõezinhos de brincar, ligam a cidade de Belém diariamente. Mas a grande viagem é esta, partindo de Santarém e acordando às cinco da manhã para ver Óbidos ao longe como um farol de luz no mapa do Rio Amazonas.

Seu Renato vive numa das casas mais fantásticas (de sobrado magnífico) de Óbidos e conta as histórias do pequeno hotel da cidade, narrativas assombradas por viagens nocturnas ao longo do rio, por animais vindos da floresta, atravessando as restingas. as várzeas e os igapós que rodeiam a curva do Amazonas. Depois, acompanha-me a porta e pergunta-me: "Para onde vai?" "Juruti, Parintins, Itacoatiara, Manaus..." "Já não saio de Óbidos há vinte e dois anos..."
Como estávamos em Junho, as ruas tinham bandeirinhas penduradas aguardando a procissão de Sant'Anna, a música de uma orquestra invisível que vem subindo a rua desde o mercado e o porto de pesca até à igreja, ao posto de correios de onde não se consegue telefonar para lado nenhum. Branca, branca como o branco gravado no curso do rio, Óbidos parou no tempo em que Seu Renato ainda saía da cidade e viajava de lancha ou canoa pelos arredores e sabia de cor os nomes dos peixes do Tapajós ou do Amazonas. E então, num dos botecos junto dos armazéns de sementes, rente ao porto, oiço aquela música, "Óbidos Terra Querida", seguida do "Sambinha de Óbidos", ritmos que não esquecem.Ha vinte anos que Seu Renato não sai da brancura de Óbidos.

Parintins, Amazonas
A FESTA DO DIABO


O Boi-Bumba de Parintins é a versão local de uma festa de larga tradição no Norte e do Nordeste brasileiro com o nome de Bumba-Meu-Boi. Mas, na Amazónia, sempre decorreu, como em Parintins, no ciclo de festas de São João, mobilizando hoje milhares de visitantes que vêm assistir à representação, outrora mais popular e que se desenrolava pelas ruas da localidade.

O que era antes uma festa popular é hoje objecto da industria turística local. Também já não significa a original catarse do mundo rural, cuja figura central era o elenco de personagens que representavam o sacrifício do boi, símbolo de riqueza, de poder e de ligação à terra, mas sim aspectos da modernidade social e económica, bem como géneros musicais mais recentes, como o forró nordestino. Há quem veja no festejo do Boi-Bumbá o herdeiro do Carnaval carioca, a muitos milhares de quilómetros e a muitos milhares de tradições. O Joãozinho do Carnaval carioca, ele próprio, diz que Parintins é que é, que Parintins é o verdadeiro Carnaval do mundo.
0 barco atraca em Parintins por volta da uma da manhã e vejo parte da tripulação correr para terra. Ao fim de alguns dias, e sabendo da proximidade da festa do Boi-Bumbá, o delírio começa: o Bumbódromo, um gigantesco estádio construído pa­ra os desfiles juninos, alberga cerca de sessenta mil almas e muitos mais corpos du­rante as festas. Porque os corpos se multiplicam, a música entontece, o Boi Garantido veste de vermelho, o Boi Caprichoso de azul, há casais que vão "transar" para o cemitério mesmo ao lado, ou para os alpendres das casas vizinhas, ou para os campos em redor, ou mesmo nas bancadas do Bumbódromo, enquanto, lá em baixo, no terreiro de desfile, milhares de cores chamam pela música e por mais corpos. E aquela voz, a do "animador" dos cortejos, não para, não descansa um minuto. O júri do Boi-Bumbá entrou incógnito para o Bumbódromo, ouve as músicas da temporada, "A Terra é Azul", "Negro América", "Eterno Campeão", "Misterioso Kuraca", "A Casa das Flautas", "Rostinho de Anjo", "Quinta Evolução". "Eterno Campeão" é de não parar, de não ceder, de não esquecer. Um dia antes de terminar o desfile, o júri já decidiu e abandona Parintins para não correr perigo de vida: deixa a decisão num sobrescrito que determina a vitoria de Garantido ou de Caprichoso.

No fim de contas, Parintins, o belo porto do Amazonas, regista hoje um número absurdo de casos de sida, de mães solteiras e de divórcios explicáveis pela passagem do Boi-Bumbá. Três dias depois de começar o festival, estou longe, a meio da madrugada, num aeroporto doméstico do Amapá, junto da Guiana: são três da manhã, três horas de trópico quente, húmido, pegajoso - e a televisão, a rede AmazonSat, transmite há cinco horas, sem cessar o desfile do Boi-Bumbá.
Um piloto de helicóptero da Marinha Brasileira que conhecera em Santarém, o major Castro, tem as licenças canceladas: no héli, dia e noite, tem de vigiar o Ama­zonas e os milhares de barcos, lanchas e canoas que rodeiam Parintins durante os desfiles, A música de Parintins ouve-se no meio da floresta: os seus sons imitam o guizo dos demónios das gravuras dos catecismos. E toda a genie sabe que nem se trata de um "ahiang" (demónio, na língua Mawé): às vezes parece um "anga açu" (espirito grande) anunciando a proximidade de "arapiá", a terra prometida na versão dos karajás. A música de Parintins ouve-se em Maturacá, a aldeia dos índios Yanomani, que habitam o sopé do Pico da Neblina, no extremo noroeste da Amazónia. Disse-me alguém que a música original da festa era a grande inimiga de Manuçawá, a morte, num dos ramos do lendário tupi-guarani. Seja como for.


Arembepe, Bahia
PREGUIÇA E CAIPIRINHAS


Eles vão todos para a Praia do Forte, os turistas. Saem de Salvador aos magotes, agora ainda mais, na altura dos 500 anos, ver tartarugas, ver areias, ver outros turistas, T-shirts de cores berrantes, senhoras de sacos de praia, crianças a correr de ponta a ponta do areal que fica mais largo com o fim da tarde e a maré vazia. Ha "ónibus lotados", carros sem estacionamento, restaurantes a deitar por fora, gritaria de baianos, uma guitarra ao fundo do restaurante, acarajés fingidos, e a estrada de volta, a estrada para Arembepe.

Pode ser a estrada entre Salvador e a Praia do Forte - mas não, é a estrada para Arembepe. Pode ser a estrada para o Pernambuco - mas não, e a estrada que passa em Arembepe. Contam as lendas locais que George Harrison e Mick Jagger passaram férias aqui, diante destes coqueiros e do mar raso, bom para surfistas cansados de Itapoã e da barra entre Salvador e Itapoã. Podem não ter estado ali, Mick & Georgie, mas aquele barzinho da praia tem toca-fitas com canções deles.

Arembepe tem essa atracção, é verdade, tal como as tartarugas mais bonitas do Projecto Tamar - mas há ali, ao alto da duna, mesmo antes de nos perdermos na sombra dos coqueiros, e de descermos para as rochas que o mar descobre, as melhores caipirinhas que já bebi em toda a minha vida de investigador do assunto: batidas mini shaker de plástico ou de madeira, as caipirinhas iluminam o fim da manhã, que é quando devem ser bebidas para cortar aquele calor baiano, o sabor dos primeiros cigarros, a sede verdadeira.

E sentamo-nos na praia. Sentamo-nos durante muito tempo na praia, o carro parado diante dos bungalows de madeira onde os hippies resistentes ainda mantêm as tendinhas de artesanato local e onde a lagoa espera o fim da tarde. É a essa hora que os pássaros vêm debicar a água e passam os cavalos rente às dunas. A aldeiazinha ilumina-se, cheia de restaurantes, porque todo o literal, de Itapoã a Guarajuba, quer imitar a Praia do Forte, esse paraíso de turistas — e faz mal. Arembepe resiste por causa da memória de antiga colónia hippie, hoje gente inofensiva que só fuma maconha e já não cultiva flores porque o sal Ihes ensinou a regra daquele mar que não alimenta flores mas só ventanias, pele bronzeada, caipirinhas, T-shirts penduradas nos tufos junto das arvores e muitas sestas sem compromisso ou horas certas.A ultima vez que passei em Arembepe, ao princípio da noite, a caminho de Sal­vador, vi que o areal tinha sido consumido pela própria memória. Vivendas nasciam aqui e ali, antigos hippies de São Paulo, do Rio ou da própria cidade de Todos os Santos, vinham passar ferias com babás para tomar conta dos filhos e carros importados alugados na cidade. Mas, mesmo assim, Arembepe conserva as caipirinhas, conserva a preguiça.


Picos, Piauí
COMO UM CLIP

A nossa viagem do dia chegaria ao fim daí a umas horas se o motor do carro não fosse mesmo à vida. Tínhamos atravessado, no dia anterior, todo o grande sertão do Ceará, as estradas do interior do Rio Grande do Norte e tinhamo-nos despedido das praias em Natal. O objectivo ainda não estava definido: ou descíamos a caminho de Tocantins e de Rondónia ate Goiás, ou subíamos atravessando o Piauí ate chegar ao Maranhão - de onde, depois de uma complicada aritmética, eu queria continuar a insistir em conseguir um avião para Roraima, porque queria visitar Boavista, essa cidade que me tinham prometido ser um faroeste, e então atingir o Oiapoque e a fronteira com a Venezuela.

Não aconteceu nada disso. Às dez da manhã, depois de uma noite amena dedicada à leitura dos jornais atrasados de toda a semana, e com um calor obsceno, atravessávamos a "divisa de Estado" entre o Ceará e o Piauí naquele enclave que se aproxima de Juazeiro do Norte. Um camião de Petrolina, Pernambuco, avisa-nos que as estradas estão uma miséria e que a seca só tinha feito desgraça. Pa­ramos algures na estrada para ver aquilo que parecia igual em todo o lado: picos das montanhas, penedos, colinas sem fim, carcaças de bois mortos pela seca espalhados ao longo de um vale que nos acompanharia por mais cem quilómetros.

Nestas circunstancias, de novo a estrada: direcção, Picos, Piauí, e depois se verá. "Cê vai a Picos?", admira-se o homem da bomba de gasolina. Ninguém vai a Picos. Toda a gente que anda naquelas estradas tem de passar por Picos; mas ninguém ou quase ninguém vai a Picos, um sinal no meio do deserto, como vim a saber depois, uma espécie de paragem para meter gasolina.
Sé que o carro pregou a partida, a dez quilómetros de Picos, quando devíamos decidir se íamos para o Norte ou para o Grande Interior. A cidade espalhava-se ao longo da estrada, numa colina de grupos de favelas, e não havia mais nada senão "burracharias* (recauchutagens), oficinas de carro, mais oficinas de carro, mais ainda, casas pobres, mais oficinas de carro, postos de abastecimento de "caminhões", um ruído tremendo, um chiar de desilusão, e de­pois o motor a recusar-se a andar. Entramos em Picos e procurámos um restaurante, onde esperámos cerca de dez horas por um carro vindo de Teresina, a capital do Estado. Mesmo não tendo cultura pop, pareceu-me estar sempre a escutar uma canção de Chris Isaak, durante a minha permanência em Picos. Ao fim da tarde, que veio cedo, cedo de mais, centenas de pessoas faziam jog­ging e marcha pelas estradas dos arredores, urubus desciam sobre as bermas, o céu perdia o tom alaranjado e havia sempre aquele cheiro a poeira queimada, coisa mais estranha. Passados muitos meses, passei em Picos de novo, em pleno dia, e com um carro mais capaz: o mesmo cheiro de pó, a mesma sensação de que o mundo tinha, de certa for­ma, acabado em Picos, no coração do Piauí.


Cachoeira, Bahia
O TEMPO QUE ACABA


A velha ponte de ferro, que leva o nome de D. Pedro II, serve para que um comboio (um "trem", um simples "trem"...) faça a ligação quase invisível entre Cachoeira e S. Felix através do aqui vastíssimo rio Paraguaçu. Os turistas que gostam das praias baianas deviam dar um salto ate ao Recôncavo, a região que rodeia a baia propriamente dita, a Bahia-de-Todos-os-Santos, para que se apercebam de uma "ilha interior" que só se descobre verdadeiramente quando o carro começa a descer vertiginosamente para Cachoeira, património da Humanidade segundo a UNESCO - património único desafiando as ruínas que crescem pelas suas ruas e revelam, mais do que um tempo único na historia da Bahia, um tempo que, verdadeiramente, acaba em cada esquina, em cada praça, em cada monumento. A sensação de fim toma conta do visitante que vem na esperança de encontrar o património embelezado da lista da UNESCO, como poderia estar o monumental convento da Ordem Terceira do Carmo, só salvo porque foi transformado em centro de reuniões e em pousada que o turismo local não dispensa e faz bem.

Não foi aí, no entanto, que comi a maniçoba deliciosa nem a moqueca rescendendo ao que deveria rescender uma moqueca baiana de verdade, melhor do que a servida em todas as casas recomendadas pelos guias de Salvador - mas sim num restaurantezinho que sai das ruínas e ruas em obras permanentes e revela uma cozinha perfeita na sua condição de testemunho dessa memória africana de cada gesto e de cada aroma da gastronomia local: milhões de escravos trazidos de África para alimentar a colonização de uma terra destinada, como esta, da Bahia, a produzir café, cana-de-açúcar e até tabacos perfeitos na sua madurez de erva que suporta as ventanias de calor que descem o vale.

Outra das revelações africanas é, sem dúvida, a festa da Nossa Senhora da Boa-Morte, um monumento vivo de ocultismo tradicional, de uma África a que o catolicismo se rendeu.
Mas esse tempo que acaba, essa memória de um tempo terminado e impossível de recapitular senão com o olhar nostálgico que vive de ilusões, e bem mais visível do outro lado de Cachoeira, ou seja, na outra margem do Paraguaçu. É enato, a vez de falar da bela ponte D. Pedro II e acompanhar o sulco das águas do rio mesmo diante dos armazéns abandonados, das fábricas que já não fabricam senão penumbras do fim da tarde, quando o céu se recorta nas encostas que descem abruptamente para a cidade e deixam ver uma das únicas ilhas de vida acentuada com o mesmo agá da Bahia: a fabrica Danneman, por exemplo, onde os charutos ainda são manufacturados (estes, que saem desta fabrica, não se encontram à venda nos duty free: é preciso procura-los com cuidado) e onde os exemplares para prova são mais do que excelentes com a sua folhinha Connecticut lisa e negra, saborosa. São Felix é ainda mais deliciosa por outro motivo: do seu cais de pedra e de calçada antiga pode ver-se melhor o cais de Cachoeira, os movimentos dos seus barcos, as árvores junto do porto.


Porto Seguro, Bahia
CABRAL E ARGENTINOS


Setecentos quilómetros de estrada separam Porto Seguro de Salvador. A primeira vez que estive em Porto Seguro vinha de Ilhéus, creio eu, e a viagem, de outros muitos quilómetros, nem deixou ver que a estátua de Cabral, "do Cabral", envergava uma camisola gigante de futebolista, com o número nove, o nove dos canarinhos, o nove de Ronaldinho. Puxámos do "Guia 4Rodas", a bíblia do viajante que come quilómetros sem olhar a distancias, e procurámos o melhor hotel de Porto Seguro, mesmo se ficasse a boa distância da Passarela do Álcool ou da estátua do Cabral. Era longe, era - na estrada para Santa Cruz de Cabrália e para a Coroa Vermelha; mas era excelente e a estrada, a BR-101, que fazíamos desde o Sul há já bastantes dias, consumia os ossos e a paciência. Da BR-101 ate Porto Seguro iam cerca de 30 a 40 quilómetros; de Porto Seguro, centro, ao hotel, iam ainda seis ou sete. Mas era o melhor hotel. Ao fim de cinco minutos de conversa com a recepcionista, que providenciou ligações à internet, rede para a varanda, toalhas para a piscina nocturna, televisão e reserva no restaurante, a rapariga, finalmente, perguntou: "Vêm de onde? Buenos Aires?" "Não. Vitória." "Não, quero dizer, de que parte da Argentina..."

Éramos argentinos. Passamos de invasores da terra dos índios (como gosta de dizer o folclore imbecil dos Pataxós, incentivado por antropólogos que admiram o relativismo cultural das universidades americanas, só porque os índios americanos foram dizimados e arrumados no folclore) a argentinos. Nós, que conhecemos o Cabral como se fosse da família. Nós, que lemos a carta de Caminha sempre que se fala do Brasil. Humilhação. "Não somos ar­gentinos. Somos Portugueses. Falamos português." Ah, desgraça. O sorriso desfez-se: "Ahhh... Portugueses, né?" E logo depois, outro sorriso ainda maior: "Pôxa, tá cansando essa historia de argentino, não?" É que os argen­tinos são a maior força ocupante de Porto Seguro - não o velho Cabral, o Ca­bral do Monte Pascoal, o Cabral da Coroa Vermelha, o Cabral de Belmonte. E Porto Seguro e, sobretudo, uma estancia turística baiana. Mais nada.

Por isso, quando o folclore comemorativo fala de Porto Seguro, lembro-me dos argentinos em excursões, enchendo o pequeno aeroporto de char­ters de Buenos Aires, ignorando olimpicamente o velho Cabral. La em cima, na parte alta da cidade, arranjaram as igrejas e as casas do bairro co­lonial. Aí, debaixo de uma arvore florida (um ipê?), logo de manhã, um grupo de rapazes dança capoeira e os guias esforçam-se por falar do descobrimento do Brasil.

Passeámos pelo pequeno porto de onde partem os barcos para Arraial da Ajuda, e compro T-shirts numa loja de esquina, porque toda a roupa da minha mala precisa de lavandaria de hotel. O vendedor, simpático, pergunta-me se sou mesmo português. "Sim. Português." "De Portugal?" "Podes crer." "Tá fazendo quê, aqui?" Olho para o homem, que embrulha as T-shirts num papel com as cores da bandeira brasileira, e ele sugere ainda: "Portugueses muito importante pra nóis. Mas há mais argentino do que portuguéis." Uma pausa. E depois, insistência: "Ta fazendo quê? Férias?" "Ná. Venho devolver o ouro aos índios."


Maceió, Alagoas
VESTIR A PELE DE TURISTA

Passámos por Aracaju, a capital do Sergipe, como se fugíssemos. De longe, ao longe, Aracaju parece um enorme complexo industrial, com fumo, favelas e pântanos. Só na segunda passagem pelo Sergipe descobri que não era assim, mas, dessa vez, ainda não sabia, de modo que preferimos, eu e o Rui, arriscar mesmo. Há uma semana que percorríamos o literal brasileiro: estradas sem fim, "caminhões" e "treminhões", relatos de futebol no rádio do carro, almoços tardios em postos de gasolina à beira da estrada, a BR-101 fantástica, a BR-101 sem fim, a mais emblemática de todas as rodovias brasileiras, a que une o Norte ao Sul, atravessando quase todo o grande litoral atlântico, praticamente desde o Chuí - ou desde a Lagoa dos Patos, com mais exactidão -, no Rio Grande do Sul, passando pelo Rio, pela Bahia ou pelo Recife, até chegar a Paraíba e ao Rio Grande do Norte. A sua extensão é a de uma vida que sobrevive nesta cultura de estrada, com histórias de viagens intermináveis, de solidões que passeiam pelos vários estados que atravessa, cruzando, com o seu risco imperfeito e o piso irregular, o risco do horizonte e do mar.

E foi então quilómetros à frente, que entrámos em Alagoas, a mesma Alagoas de Collor e PC Farias, a Alagoas dos coronéis da cana-de-açúcar e dos engenhos - mas também a Alagoas que vai dar a Maceió, com a sua entrada aparentemente cosmopolita, de stands de automóveis e escritórios de grandes empresas estendendo-se por quase uma dezena de quilómetros.

Chegámos já a meio da noite ao centro, à procura de hotel: na "litorânea" encontrámos um, perfeito, simples e simpático, virado para a grande avenida que acompanha a praia da cidade, uma alameda que pode imitar a marginal de Santos, a Boa Viagem do Recife ou, até, a Ipanema de todas as cidades com mar e praia - só que na rotina da noite de Maceió não há negros nem pedintes nas esplanadas; alguma coisa os varreu ou escondeu.

Mas Maceió respira uma duplicidade de ares: a dos bares e restaurantes dos hotéis, onde se notam os mexericos da política local e nacional (não fosse a ter­ra dos Collor...), e a das esplanadas nocturnas onde se bebe whisky e cantores do que resta de mpb e bossa nova aguardam até sair o último cliente. É fácil imaginar o ambiente: só sobreviveríamos na pele de turistas, com a máscara de visitantes que não incomodam nem fazem perguntas, com a naturalidade de quem passa pela zona mais quente da cidade sem achar caloroso de mais. E imagina-se Collor no meio daquele ambiente: sorrindo, mostrando a pele bronzeada, fazendo jogging pela "litorânea", calculando os quilómetros que corre cada manhã pela quantidade de "postos" de praia que passam por ele, aparecendo como uma mancha de luz nos hotéis mais caros, frequentando os res­taurantes dos últimos andares, conspirando nos bares ao fim da noite e nos escritórios da zona de negócios logo de manhã, exactamente como um alagoano de Maceió se vestiria de turista para conhecer uma cidade igual a sua.

Só no dia seguinte, quando partimos na direcção do Norte, de llhéus (a llhéus de Nacib e de Gabriela, pensávamos, ó ilusão...), e percorríamos a primeira centena de quilómetros rodeados de cana-de-açúcar e de mais cana-de-açúcar, é que reparámos que alguma coisa tinha ficado presa à pele como uma recordação vadia e passageira de quem visita Maceió na pele de turista. »

Antônio prado, Rio grande do sul
BRASILEiROS DE ITÁLIA


Na cave de paredes de pedra, parece granito, os cinco homens praticam o jogo da "mora": é uma espécie de jogo da moedinha em que cada jogador tem de adivinhar os dedos que o conjunto de parceiros vai bater sobre a mesa, com ruído suficiente para produzir uma espécie de música, tal a forma como se repete ao executar a dança. Dizem então os números, a uma velocidade impressionante, não serve de nada tentar acompanhar a lengalenga - falam em italiano, em italiano com marca do Venetto. Um deles, o juiz da partida, decidirá depois quem ganha.

O jogo da "mora" é um dos sinais mais singelos da ocupação italiana da serra gaúcha, a noroeste de Porto Alegre (o "porto allegro" dos emigrantes do princípio do século, o Porto Alegre dos emigrantes açorianos), porque sobre a mesa ao lado estão os outros sinais, o salami, o queijo, o vinho - e o rumor vago do italo-brasileiro, esse idioma quase comum na zona, o idioma que se aprende em cada lugarejo.

Venho do interior da serra, onde almocei com Alfredo Zen, um italiano de segunda geração, e onde comi uma sopa de massa fresca. Chove. Chove desde há semanas na serra gaúcha, chove em todas as cidades, independentemente da sua marca italiana, como Caxias do Sul, ou alemã, como São Leopoldo. Aqui não se bebe mate, não ha chimarrão nem bombachas, não há música de rancho nem gado em manada: os homens usam bonés e as mulheres vestem com a simplicidade das aldeias italianas, há vinhas nos vales e nas colinas, os homens têm os bigodes e os coletes dos anteepassados, as raparigas têm a tez clara do Norte de Itália e o sorriso moreno do Sul, as madonnas sentam-se ao canto da sala e cozinham, os homens jogam "mora" na taberna ou na rua, debaixo de uma amoreira gigantesca e chamam-se António, Emilia, Alfredo, Tomasini e Vitorio. Ao fim de cada partida de "mora", enchem os copos daquele "rosso" claro que opera maravilhas a meio da tarde, perguntam pela vida das famílias, vendem terras e gado, combinam casamentos e são, simplesmente, já não sei, brasileiros de Itália ou italianos do Brasil.


Brasília, Distrito Federal
PÁSSARO DE BETÃO


Brasília não caberia em nenhum roteiro dos lugares de sonho do Brasil não fosse dar-se o caso de ser a cidade dos sonhos do Brasil moderno, o Brasil dos anos 50, o Brasil da eterna e grata rendição a Juscelino Kubitschek, JK. Tinha muito de sonhador, JK. Os seus biógrafos, tantos, evocam esse lado da sua personalidade, gostando de realçar os feitos que o Brasil lhe atribui e a onda de entusiasmo que sempre provoca o seu nome vivo e as suspeitas que envolvem o sen nome já morto. Os historiadores bem podem dizer que JK deixou o Brasil endividado e com a bolsa hipotecada. Não rende, esse argumento: JK é um dos fantasmas de Brasília. Andam muitos fantasmas à solta em Brasília, de resto, e facilmente se podem identificar um a um: Vargas, JK, os generais e coronéis, Tancredo, Collor, os dinheiros perdidos, os dinheiros soltos, ACM, FHC, Niemeyer. E andam soltos os sonhos dos arquitectos que fizeram Brasília como uma obra de arte, que Malraux acreditava que poderia condensar a força de uma nova imaginação poética arrancada ao sertão para nele plantar um pássaro de betão, acrílico, vidro, relva dos parques, políticos profissionais e as formas celestes dos edifícios.

Mas Brasília, como se sabe, é a cidade dos funcionários do Estado. A cidade dos boatos e dos rumores. A cidade que fica deserta ao fim-de-semana, quando os deputados, senadores, meninas das secretarias, embaixadores e simples funcionários do monstro administrativo do Estado abandonam a cidade e rumam ao aeroporto ou as estradas que fogem do DF (distrito federal). Nessa altura, ha muitos restaurantes que fecham, muitas lojas que se escondem, bares que encerram as portas por dois dias. E o viajante de Brasília tem então, ao seu dispor, o cenário dos sonhos de Brasília, finalmente - sobretudo ao crepúsculo, altura em que uma música de Ligetti, por exemplo, seria uma ventania para sacudir as ruas desertas, as avenidas cheias de solidão, o céu de Brasília, a condenação de Brasília à sua solidão de não ter tristeza nem alegria, mas apenas a sua biografia de pássaro de betão que veio ocupar o sertão de Goiás para o incomodar com as suas memórias, os seus demónios, os seus pequenos horrores.


Jornal "O Independente" (Caderno 3) - 5 de Maio de 2000