Os prazeres entre as palavras
O "grande público" conhece-o do "Escrita em Dia" e do «Falatório», escritores e conversas que colocaram Francisco José Viegas na televisão. Na «obscuridade», ele é romancista, poeta, director da revista LER. De entre as suas obras mais conhecidas, lembremos «Crime em Ponta Delgada» ou a «Morte no Estádio», onde o policial nos introduz a detectives que buscam respostas para crimes e sentimentos. Entendido em charutos e restaurantes, «investigador» da poesia própria dos lugares e das terras, é o entrevistado ideal para este número de «Prazeres.»
No seu primeiro livro, "Regresso por um Rio", entramos num ambiente naturalista, onde a narrativa surge quase como que a pretexto da descrição. Hoje em dia a sua escrita parece ter perdido esse tão acentuado bucolismo, como um fim em si...
Tem a ver com o facto do "Regresso por um Rio" ter sido, para já, o primeiro romance, e, em segundo lugar, com o facto de ser um cântico de louvor e de saudades, é um romance de saudades. Da minha terra, dos meus lugares, do meu rio, da minha família, da minha infância... Quando se escreve um primeiro livro, escreve-se-lo por uma urgência, por uma necessidade que não tem a ver depois com os outros livros. Não concordo que os outros livros tenham perdido esse tom, não diria bucólico, mas descritivo. Tem muito, aliás é uma das críticas que se fazem ao género, àquilo que poderia ser o policial puro (e que eu não pratico, porque já não há policial puro, porque não há literatura pura, só paródias de géneros...), que é pelo meio aparecerem coisas que não têm nada a ver com o policial. Aparecem monólogos, capítulos só descritivos, capítulos só de monólogos...
Termina o "Regresso por um Rio" dizendo "Contemos pois a história, estão os pássaros a ficar impacientes." De qualquer forma, a sua narrativa actual segue uma linha mais clássica que o seu primeiro romance, usando o molde do policial, se bem que um policial sui generis. A sua primeira obra parece provocar o leitor, desconstruíndo a linha da história.. Esta é uma forma que renega hoje em dia?
Não, não renego, cada tema exige determinados mecanismos. Se a pessoa está a escrever um livro "há homens que mergulham no rio, há homens que vêem estrelas a dançar em cima do rio, há homens que acreditam que há um tesouro escondido no rio", é óbvio que estamos a lidar com um universo diferente do universo do policial, o universo mais verosímil. Aquela realidade é completamente inverosímil, no "Regresso por um Rio". É a história duma aldeia, onde os homens que iam ao rio em determinadas noites cegavam, porque havia uma luz profunda que vinha das águas. Obviamente que para se tratar destas questões não se pode utilizar o mecanismo do romance clássico, tem que se descobrir outras formas.
Mas pode construir uma história, como por exemplo no realismo mágico... Os momentos de magia surgem dentro duma determinada narrativa.
Eu penso que isso acontece no "Regresso por um Rio". O que acontece com essa última passagem, "contemos pois a história, finalmente", é porque a ideia era acabar exactamente como se tinha começado, "vamos contar a história", só que quando tudo estaria solucionado no livro, quando a Catarina tinha descoberto que é que se tinha passado, quando o próprio coronel tinha dado indícios de que havia mesmo um tesouro escondido nas águas do rio, acontece que a Catarina morre. E quando morre ela própria vê o seu funeral. Quer dizer que a história começa outra vez. Aquilo que se chama de realismo mágico latino-americano, que eu acho que é uma das formas de imaginação romanesca mais importantes dos anos 70, 80, tem a ver com um livro absolutamente surpreendente, que eu acho que é o fundador de todo esse género, que é o "Pedro Páramo", de Juan Rulfo, um mexicano, que é a história de um homem que vai conhecer o seu pai e, à medida que vai avançando pelas montanhas em direcção à aldeia, vai encontrando uns personagens e quando vai identificá-los dá-se conta de que já tinham morrido há muito tempo... A certa altura acontece que ele próprio se dá conta de que também já morrera há muito tempo... Há muitas maneiras de construir esse universo. Ou recuperando histórias tradicionais ou fazendo um delírio completo...
Lendo autores mais jovens, como o José Riço Direitinho, encontra-se na escrita dele muitas parecenças com a sua. Acha que de alguma forma ajudou a construir uma nova forma de escrever um romance ou deu um novo imaginário ao romance português?
Acho que não fiz nada disso. Acho que não me preocupei com isso. Se eu me tivesse preocupado com isso, era capaz de viver a literatura de outra maneira. Mas vivi sempre isso de uma forma muito descomprometida e não consigo vestir a pele do escritor, a pele do tipo que fala do seu romance e que se senta numa cadeira, "eu e a minha obra"... Acho que há coisas curiosas, como uma pessoa ver que há soluções que adoptou há muito tempo e que agora são adoptadas. Isso tem alguma graça. Aquilo que se passa com o José Riço Direitinho, que é um óptimo escritor, é que ele se dedica a escrever sobre o espaço não urbano e as contiguidades vêm daí. No "Regresso por um Rio" há um capítulo que é todo dedicado às ervas. Isto não quer dizer nada, o Camilo já o tinha feito, na abertura do "Eusébio Macário" tem três páginas inteiras sobre as ervas... São realidades completamente diferentes e os próprios objectivos daquilo que eu faço e daquilo que o José Riço faz são coisas completamente diferentes.
Imagina-se hoje em dia a voltar a esse estilo mais declaradamente poético que evidenciou no "Regresso por um Rio"?
Eu acho que nunca o abandonei. O que houve foi a noção, a certa altura, de que os caminhos do romance estavam falidos. Isto é, todas as histórias que nós contávamos eram histórias que já tinham sido contadas. De uma maneira ou de outra. Um dia, eu estava a escrever um guião, com o João Canijo... O João é um excelente cineasta e a certa altura nós dividimos um pouco as partes - eu escrevia as partes policiais e as partes cómicas, e o João dedicava-se a tratar os grandes casos amorosos, as grandes paixões... E quando, de repente, nós estávamos, às cinco da manhã, a trabalhar no guião e não tínhamos uma solução, ele baixava-se, apanhava um volume enorme, que eram as obras completas de Eurípides, e dizia "espera, que eu vou aqui". E encontrávamos sempre uma solução, em Eurípides. Havia para mim um problema grave em relação ao romance, ao chamado romance clássico, bem comportado, ao romance que trata de si próprio, muitas vezes. E eu penso que aquilo que me fascinava no romance... Essencialmente, eu sou um poeta, mas aquilo que me fascinava no romance era a possibilidade de contar uma história. E para contar uma história não vale a pena andarmos com muitos vanguardismos, com muitas piruetas técnicas. Isso já está tudo feito, não é? Aquilo que a literatura dos anos 80 fez, o Vergílio Ferreira já tinha feito nos anos 60 e 70, e aquilo que o Vergílio Ferreira fez, já tinha sido feito antes... Aquilo que eu encontrei no policial foi uma espécie de modelo, que era engraçado parodiar. Há um modelo, que é fácil, que é barato e que rende bastante. Tem lá as categorias essenciais da narrativa, isto é, tem um problema, o problema é a morte, o desaparecimento, a ausência, tem alguém que procura e alguém que vai ser castigado, que causou ess problema. A partir desse modelo, nós podemos construir todas as histórias possíveis e podemos tratar no romance tudo aquilo que poderíamos tratar no chamado romance clássico, no romance sério, no romance das academias.
O policial funcionará como um pretexto para falar de outras coisas. Mas como é que aconteceu essa paixão pelos policiais?
Aconteceu muito cedo. O policial é a literatura em estado puro, em estado bruto. O policial é, como género, é a forma mais simples de contar uma história. Eu lia o que liam todos os miúdos da minha geração, aquelas leituras que nos fizeram sonhar, o livro na adolescência tem que ser isso, uma coisa que nos faça sonhar. As histórias do Salgari, Júlio Verne... E a partir daí, um dia apareceu um policial. E um policial porquê? Porque no policial apareciam personagens, aparecia gente lá dentro, pessoas como Poirot, Miss Marple, o inspector Maigret e isso tinha alguma graça, que era seguir uma espécie de "neverending story" com as mesmas personagens, por isso, se calhar, é que nos meus livros adoptei sempre os mesmos personagens, detectives. Uma espécie de "neverending story", eles estão ali como num filme, a ideia básica é a de eles entrarem num filme. Eles são contratados para figurar no "Crime em Ponta Delgada", depois contratados para a "Morte no Estádio", contratados para "As Duas Águas do Mar", contratados para "Um Céu Demasiado Azul", para o "Crime na Exposição" e para "Lourenço Marques", que vai sair no final deste ano. Eu sou uma espécie de realizador, não faço mais do que por duas pessoas, dois detectives, em jogo, ali no meio daquilo, perante um problema, e de ver o que é que eles, que têm biografia própria, uma ficha biográfica que eu fui construíndo ao longo do tempo, o que é que eles procuram. Por isso é que a experiência actual de escrever o "Crime na Exposição", semana a semana, no Diário de Notícias, é das coisas mais deliciosas e, ao mesmo tempo, surpreendentes. Eu não escrevi tudo seguido, todas as semanas entrego, à sexta-feira de manhã, o folhetim do dia seguinte. E a partir daí eu vejo a reacção: o que é que este personagem, perante este problema, que eu gerei neste episódio, o que é que ele vai fazer na semana a seguir? E eu vejo um bocado o romance policial assim. Interessei-me porque calhou, podia não me interessar, podia até, como muita gente, detestar o romance policial. Calhou gostar.
E o Vázquez Montálban?...
As minhas leituras iniciais eram, de facto, o Simenon e a Agatha Christie, como quase toda a gente. Mas havia tipos que eu detestava, o Stanley Gardner, com aquele Perry Mason, sempre detestei aquilo. Mas desde miúdo que detestava, não era pelo facto de ser advogado... (risos). O tipo era um bocado machista, aquela relação com a Della Street, ainda por cima se a Della fosse uma rapariga nova e jeitosa, mas não, acho que já era uma senhora de meia idade e depois tinha uma relação supostamente assexuada, era um bocado para o ridículo... E depois houve, sim, uma espécie de aprendizagem. Depis desses autores que me iniciaram no género, uma pessoa não começa o policial pela porta grande, pelo Chandler ou pelo Ross McDonald ou pelo Mosley... Não começa logo pelos três sagrados, que são o Chandler, o Ross McDonald e o Hammet. Descobre-os, um dia. No meu caso foi uma descoberta, porque eu tive a sorte de viver numa cidade de província, onde a gente para procurar um livro tinha que o descobrir... Tinha que ir às bibliotecas itinerantes, tinha ir às livrarias pequeninas, tinha que andar por ali a descobrir.
Num dos seus livros de poesia mais divulgados, "O Medo do Inverno", encontramos como que uma poesia "geográfica", onde os lugares cedem aos sentimentos e trazem os sentimentos consigo.
As pessoas não são muito importantes. A não ser aquelas que a gente realmente ama. Por isso os lugares são muito mais fascinantes, porque se ligam muito mais facilmente aos sentimentos que as pessoas. Há um livrinho meu muito antigo, uma brincadeira que ainda se publicou, chamado "Paisagens Caligrafias"... Sou um viajante, acima de tudo, e isso tem muito a ver com o fascínio das viagens e com o fascínio dos lugares. Há lugares que são mágicos, que têm muito mais importância na nossa vida que pessoas. As pessoas mudam, somos todos frívolos, temos todos feitios. Os lugares não, os lugares são acessíveis, a gente pode-se apaixonar por um lugar e manter essa paixão para sempre, por que é um lugar. Tem uma perenidade muito maior.
Mas muitas vezes personifica os lugares, dá-lhes sentimentos e emoções...
Mas eles têm sentimentos e provocam emoções. Isso acontece-me nalguns lugares, por razões de vício cultural, outras por ter sido uma espécie de amor à primeira vista, a Irlanda, os Açores, o México, Moçambique... São lugares completamente diferentes e, no entanto, são laços invisíveis que me prendem a esses lugares.
Crê que a sua inflexão por uma narrativa mais convencional, pelo menos em termos de "contar uma história", na sua prosa, alimenta-lhe essa necessidade de "regressar por um rio", na sua poesia?
Nunca gosto muito de falar da poesia, porque acho que sobre a poesia não se fala. Pelo menos, eu não falo. Eu situo a poesia sempre fora da literatura. Uma coisa é literatura, aquilo que a gente constrói, a ficção, que tem uma dimensão estética, a outra coisa é a poesia. E a poesia não deriva da linguagem, deriva do sagrado. Tem uma ligação mais estreita com o sagrado do que com os dicionários. Não tem muito a ver com a geringonça linguística, tem muito mais a ver com o sagrado, com o nosso limite...
Será um código de expressão do sagrado? Porque o sagrado sempre precisou de arranjar formas de expressão e formas linguísticas de expressão...
É, de certo modo, sim. Uma linguagem que transcende claramente os limites da própria linguagem. É uma linguagem em que A não é igual a A, em que há outras coisas pelo meio, e por isso eu nunca incluo a poesia no ninho da literatura stricto sensu. Acho que está ali, mas é sempre outra coisa.
O Manuel Alegre diz, por exemplo, que a poesia não é literatura, é magia...
Exacto, o Manuel Alegre tem um ensaio, no fim dos Poemas Completos, em que vai muito neste sentido.
Num poema seu encontramos "A fome de escrever é como a fome." A sua relação com as letras é assim tão imperativa?
Isso era no poema (risos). Não é possível relacionar esta frase com a minha relação com as letras, é possível relacioná-la com a poesia, com aquilo de que fala. A minha relação com as letras é outra: por um lado é afectuosa, às vezes apaixonada, às vezes irritada, mas sempre uma relação afectiva. Por outro lado, há uma relação que é profissional. No fundo vivo só do que escrevo. Vivo da LER e vivo do que escrevo. Depende dos momentos: há momentos em que me apetece muito mais ver um jogo de futebol do que ler um romance. E apetece-me muito mais apanhar um avião ou fazer uma prova de «todo-o terreno» do que estar a ler o último romance de não sei quem. «A fome de escrever é como a fome» tem a ver com a poesia. É-me tão essencial como a própria fome. Há duas dimensões diferentes.
Disse, numa entrevista, que a ideia de que se sofre enquanto se escreve é uma ideia ridícula.
Isso não é uma ideia sequer.
Mas é inumeras vezes repetida...
É uma hipocrisia de todo o tamanho. Uma estupidez. Se há um escritor que diz declaradamente que sofre imenso enquanto escreve, eu peço-lhe humildemente que deixe de escrever, porque não gosto de ver as pessoas sofrer. Escrever é uma coisa facultativa. Se não quer escrever não escreve. Não se deve encarar a vida como uma etapa de sofrimento. E depois essa afirmação cheira-me sempre a pose, que é aquilo que eu acho mais detestável no mundo das letras. Quando me dizem isso eu percebo que a pessoa está a mentir. Se por um acaso francamente deplorável isso é verdade, eu tenho quase a certeza de que se ler aquilo que a pessoa escreveu eu não vou gostar. Isso corrresponde a uma ideia de pose, de literatura que não é francamente a minha. Que tem a ver muito mais com a fruição, com o prazer, com a alegria, com o lado amigo das próprias letras.
No texto publicado na LER do verão de 1996 «A Rendição da História e as Histórias de Policiais» comenta a «desconsideração social e a suspeita literária» em que vive o romance policial e a poesia...
Uma pessoa entra numa livraria e as secções mais desconsideradas, que estão mais em baixo no sistema de estantes das livrarias, são os romances policiais e a poesia. E eu acho que deve ser assim...Eu acho que deve ser assim porque assim é que está bem para a nossa sociedade. Não vamos obrigar as pessoas a lerem policiais e poesia, tal como não vamos obrigar todas as pessoas a ver futebol ou o «Big Show Sic»... Mas acaba por ser uma coincidência serem esses os dois géneros menos apetecidos pelas livrarias.
Nesse texto é especialmente critico em relação ao meio literário português, aos escritores e literatos...
Estou-me nas tintas para o meio literário português.
Tem mesmo a opinião de que esse meio é snob e não sabe conviver com determinados tipos de géneros literários.
É snob, geralmente inculto, hipocrita, tem muitas fardas, parecem todos almirantes a tomar chá, e custa-me ver que alguns autores novos aprendem muito depressa essas formas de comportamento e os códigos de hipocrisia das academias literárias e que se comportem e reproduzam as mesmas frases. Muitas gente chega à literatura com uma ânsia enorme de reconhecimento social, no sentido de society, fazem parte de um clube de escritores. Acho isso francamente deplorável. É por essa razão que não vou aos lançamentos, a cocktails, não tenho uma relação simples com isso. Tenho muitos amigos escritores, felizmente, com quem geralmente falo de outras coisas que não literatura. Tenho escritores portugueses que admiro profundamente.
Por exemplo?
O José Cardoso Pires, o Vasco Graça Moura, o Rui Knopfli, que morreu agora, com quem eu tinha uma especial fidelidade, de discípulo, que nunca consegui ser. A Luisa Costa Gomes, o Mário de Carvalho, a Hélia Correia, são pessoas com quem gosto de falar independentemente de terem ou não a ver com a escrita. O José Agostinho Baptista, o Eduardo Pitta. Relaciono-me com estes escritores, num relacionamento que não tem a ver com o mundo fechado das letras. Há também obviamente escritores que têm um lado humano fascinante. Por exemplo, a Agustina Bessa-Luis é uma das mulheres mais fascinantes que eu conheci nesta área das letras. Uma pessoa com uma vida, com uma graça, com um sentido da piada, de humor, que são deliciosos. O Alçada Baptista, por exemplo. Quando o escritor veste a farda de escritor, quando o escritor se comporta como um almirante a tomar chá, acho que está tudo estragado. Parecem figuras de cera.
Falou da Luisa Costa Gomes. Num artigo seu recente, publicado no «DNA», falava dos prémios literários e do facto de as pessoas que fazem parte dos juri desses prémios regerem-se, em geral, por critérios duvidosos, que só se relacionam bem com a literatura dita «séria», «institucional». E referia-se a uma frase dita pela escritora Luisa Costa Gomes que falava no sentido lúdico, de divertimento da literatura...
Em relação aos prémios literários acho que nem todos atribuem prémios a obras enfadonhas. Aliás, a LER atribui um prémio literário. Refiro-me ao prémio da APE. O prémio da APE limita-se a revelar a marca académica e ideológica que está por detrás. É um prémio que não é polémico, e quando o é, é-o pelos maus motivos. É por ser conservador. Falta ao prémio da APE participação. Falta-lhe vida. Toma poucos riscos. Dedica-se a consagrar ano sim, ano sim um escritor já consagrado. Imagine que um fulano qualquer, que vive em Estremoz, ou em Mirandela, e publica um romance novo realmente bom, mas é o primeiro romance, ele nunca terá o prémio. Porque antes dele há uma lista enorme de escritores que aguarda a consagração do Prémio APE. É como o Prémio Camões. Por mais valor que eu possa reconhecer ao Pepetela, acho um demasiado politicamente correcto dar o prémio ao Pepetela. Não quer dizer que ele não venha a merecer o Prémio Camões.
Vamos falar agora do tema «Prazeres», que é o tema desta edição da INVENTIO. Nos seus livros os prazeres estão sempre presentes. Por exemplo, as refeições em casa de Carlos Ferreira, os passeios de barco com o mesmo de Filipe Castanheira. Ou os charutos que Jaime Ramos vai sempre fumando. Podia-nos falar da importância que atribui aos prazeres e na forma como eles circulam nas suas histórias?
Eu falo dessas coisas porque são as coisas de que eu gosto também. Se uma pessoa tem o trabalho de escrever um romance já agora tem que ter essa contrapartida de poder brincar com as coisas de que gosta: os charutos, a comida, algumas bebidas, os sítios. A nossa sociedade tende a ser, não repressiva, mas cada vez mais moralista em relação aos prazeres. Fumar é considerado uma doença grave, comer é considerado um perigo. O sexo, já o sabemos, é também um perigo. Estamos a transformar-mo-nos cada vez mais em pessoas que lutam pela eternidade, como se a saúde pudesse garantir a eternidade.
Como é que vê o fundamentalismo contra os fumadores?
Todo o fundamentalismo é uma anedota. Há fundamentalismos mais graves e fundamentalismos mais risíveis. O fundamentalismo anti-tabaco é um fundamentalismo risível...
Mas vinga...
Extraordinariamente. Na California havia uma lei que impedia que se fumasse nos restaurantes. Agora há outra que proibe que se fume na rua e em todo e qualquer bar. É um fascismo. Uma das forma de manifestação de fascismo - dizer isto a juristas, arrepiam-se, fascismo não tem a ver com isto, mas tem, de manifestação do pior que o fascismo teve. Fascismo e o comunismo. A definição de um modelo ideal de homem, de família, de sociedade. Banir todos aqueles que não se enquadram nestes modelos, banir todos aqueles que gostam de futebol, de sexo ao vivo. Banir, e isso é que é perigoso.
Em relação à gastronomia. Escreve para a «Visão» na qualidade de critico de restaurantes.
Agora apanhei uma intoxicação alimentar (risos).
Nestes tempos que correm perdeu-se o prazer de comer bem?
Perdeu-se um bocado o prazer porque as pessoas não têm tempo para ter prazer. O prazer é uma coisa que tem a ver com o tempo. Aquelas refeições em que se come demoradamente, em que se come lentamente, em que há tempo para saborear, para experimentar o vinho, para experimentar a cerveja, esse tempo acabou. Acabou como norma. A norma hoje é comer para sobreviver. Já não é comer para viver. Aliás, hoje, toda a vida das pessoas rege-se pelo princípio da sobrevivência. Tirando alguns casos de pessoas que têm dinheiro suficiente para comprar o tempo. É como o personagem do livro «A Morte Feliz» do Camus, que mata e rouba para ter o dinheiro suficiente para comprar o tempo, porque quem tem o tempo tem a felicidade.
A sua vida, nos últimos tempos, em termos profissionais, tem passado pela revista LER, pelo programa «Escrita em Dia», na SIC. O que representam para si estas duas experiências?
A LER é uma experiência que já tenho desde há dez anos. E é uma experiência sempre gratificante, embora seja um trabalho um bocado solitário. Porque na LER eu sou paquete, chefe-de-redacção, editor, redactor, director.
É esta a Redacção da LER...
Sim, esta sala vazia, cheia de livros é a Redacção da revista. Quanto ao «Escrita em Dia», foi uma experiência de que eu gostei francamente.
Continua agora na TSF...
Gostei imenso de fazer o «Escrita em Dia». É prova de que é possível fazer um programa sobre livros na televisão. E é possível conquistar público para os livros através da televisão. Obviamente não é um programa de grandes audiências. Mas os livros não hão de ter grandes audiências.
Mas não acha curioso que esse programa tenha surgido numa televisão privada?
Não acho que isso seja importante, a televisão privada assume riscos, o risco de experimentar.
Não pensa que o Serviço Público de televisão deveria assegurar esse tipo de programação?
Acho que as televisões deveriam considerar que esse é um espaço importante da sua programação. Ponto. Não tem a ver com o Serviço Público. Tenho uma ideia do que é deveria ser o Serviço Público de televisão. Penso é que qualquer televisão deve apostar nisso, porque é uma faixa do mercado significativa. Não acredito num canal cultural. Não acredito num canal exclusivamente dedicado à cultura. Não sei o que é que é esse universo da cultura. A cultura antigamente era os clássicos do cinema, da dança, da musica, da ópera, do teatro. Mas hoje não é. A cultura das pessoas hoje é completamente diferente. Tem muito a ver com o universo do audiovisual, tem muito a ver com o cinema, com a conversa. Daí o sucesso da internet, a internet fornece a conversa que não há nos outros sítios. Definir um canal cultural com pessoas de certa idade acho que é um risco. Hoje a cultura não é a soma de todas as artes. Hoje a cultura tem a ver com a informação, com o desporto, com o lazer, com a viagem. Não creio que um canal cultural seja um canal de artes e espectáculos. Tem a ver sobretudo com um canal dedicado a essas sensibilidades.
Numa entrevista que deu ao «Semanário» disse que achava muito mais importante as pessoas verem informação com qualidade, uma boa reportagem do que verem um programa sobre livros...
As pessoas vêem um programa que lhes apresenta uma soma de objectos dispersos, aos quais se confere muito prestígio, muita autoridade, mas que de facto não têm uma ligação directa com a vida das pessoas, com esse universo da televisão. O universo da televisão é um universo perigoso, porque é um universo de fantasmas. Tem a ver com os fantasmas do desejo, tem a ver com os fantasmas do sonho puro, tem a ver com todo o tipo de fantasmas, por isso às vezes é preferível não tirar às pessoas a possibilidade de ter os seus fantasmas. Podem-se alimentar esses fantasmas de uma forma atraente, e de uma forma, se quisermos, pedagógica. Por isso é muito mais importante as pessoas verem uma reportagem no deserto na Mongólia do que ver teatro enfadonho, mau. É preferível as pessoas verem um bom jogo de futebol do que um mau filme.
Neste momento faz o programa «Falatório», às sextas feiras, na TV-2, que é dedicado ao jornalismo. Em vários artigos seus, dos últimos tempos, há uma crítica que se tem repetido. A critica à perseguição moral que os jornalistas tendem a fazer aos políticos e a vários outros personagens da sociedade.
Pois, em relação aos políticos, aos proprietários de boites da província, aos futebolistas, às pessoas que não são escrupulosas no cumprimento dos seus deveres fiscais. Todo e qualquer espécie de moralismo é sempre ridículo.
É esse o maior problema que enfrenta neste momento o jornalismo?
Não, há outros problemas graves. Esse problema irrita-me profundamente e por isso tenho escrito sobre ele. Irritam-me todas as formas de moralismo, porque se encaminham muito rapidamente para o fundamentalismo moral, religioso, político. Acho isso deplorável. Há outros problemas dos media. Vai haver agora um congresso de jornalistas, vamos ver o que é que se vai debater aí. Existem outros problemas profissionais. O jornalismo está a debater-se neste momento com questões. A importância da internet, a rapidez cada vez maior com que a informação é passada às pessoas. O problema dos "directos". O problema dos "directos" é um problema grave. Não sou inimigo dos "directos", mas acho que os "directos" não são uma coisa saudável. Aliás, o Pacheco Pereira tem um artigo notável sobre os "directos" na televisão. Apresentou-o num colóquio feito pelo Observatório de Imprensa. Sem falar que o Pacheco Pereira é uma das pessoas que, com mais segurança e cultura, reflecte sobre estas questões.
Há uns anos atrás o Franscisco José Viegas teve uma experiência como professor universitário.
Foi deliciosa para mim.
Como é que vê o meio universitário em Portugal?
Não tenho uma ligação neste momento ao meio universitário em Portugal. Não o posso avaliar. A minha experiência passou sobretudo pelas pessoas de Letras. As de filosofia da linguagem. Naquela altura havia problemas particulares, nos quais tentei sempre intervir. No ensino, o que me preocupa não é o Direito, mas são outros cursos. Por exemplo acho que o ensino do português está a passar uma crise garvíssima. Depois o que me preocupa no ensino em geral são os favores concedidos à facilidade. As lutas contra os exames parecem-me ridículas. Acho que devem haver exames nacionais. Exames gerais rigorosos. Penso que há uma falta de autoridade lamentável em quase todos os graus de ensino pós-básico. E acho que devem haver propinas. Acho-o como cidadão, não como especialista.
Entrevista a Francisco José Viegas
por Nuno Costa Santos / Miguel Romão
Inventio n.º 3 – Janeiro de 1998
<< Home