fevereiro 02, 2009

O viajante enquanto espião

Todos nós queremos um lugar para viajar. Um lugar inclinado sobre nós e sobre a felicidade. Às vezes procuramos um lugar que nos complete, uma sombra, um muro cheio de sol, uma ventania, uma praça, uma rua onde encontramos uma parte de nós, uma casa onde viveríamos a nossa vida – se tivéssemos tempo, se tivéssemos oportunidade. Viajar tornou-se, não apenas uma espécie de apelo da humanidade civilizada e com um mínimo de meios económicos, mas também uma vitória sobre a eternidade; porque a viagem nos salva do que perdura e que não é tão bom como julgávamos.

Às vezes leio romances de John Le Carré para poder viajar. Por exemplo, O Peregrino Secreto. O leitor da Volta ao Mundo acompanha-me há vários anos e, por isso, posso ter esta intimidade de desabafo. Em O Peregrino Secreto George Smiley, o grande personagem de Le Carré regressa da sua reforma e vem jantar com futuros espiões em fase de aprendizagem e com velhos amigos, a quem fala sobre os mistérios e banalidades do ofício. Ned (que participa em vários livros) conta histórias ao longo do livro – ele recorda as viagens. Berlim (a Berlim da Guerra Fria que alimenta todas as histórias de espiões, naturalmente), Munique, Banguecoque, Telavive, Hamburgo, Canadá, Rússia, Beirute, todos os lugares onde andou a Gente de Smiley (título de um dos seus mais belos livros). Há um cemitério em Hamburgo, não posso esquecer esse cemitério que, a certa altura, aparece recortado numa das páginas do livro como o cenário em que um casal faz amor ao crepúsculo, perdidamente. No Oriente, algures no Oriente, entre o Vietname e o Laos, Ned e Hansen passam uma noite conversando sobre a selva. Há uma ilha escocesa onde uma mulher habita uma casa – é preciso atravessar um canal, tomar um ferry, suportar os bancos de nevoeiros.

Noutro livro, O Fiel Jardineiro (sim, se apenas viu o filme não viu nada – porque o livro é de uma grandeza assustadora) as paisagens sucedem-se, do Quénia a Itália, do Canadá à Suíça, repetindo apenas aquela melancolia do espião que veste a pele do viajante. Em certa medida, o viajante é um espião, um aventureiro que viaja disfarçado e sem a pele que o cobre durante um ano de trabalho ou mais. O verdadeiro viajante (procuramos sempre essa figura, não é?) troca de identidade e espera não ser reconhecido enquanto espera por um avião ou se perde numa estrada. Tal como nos livros de aventuras do nosso século passado – em que os heróis, na maior parte das vezes, são espiões –, o viajante é sempre outra pessoa, é sempre o outro: dorme nos hotéis evitando olhar-se nos espelhos, anota pormenores que noutras circunstâncias lhe pareceriam inúteis e irrelevantes; leva o seu caderno para escrever impressões que teria vergonha de redigir um mês antes; as suas fotografias procuram o mistério de um lugar – um lugar para viajar, um lugar inclinado sobre nós e sobre a felicidade –, as sombras de um mercado ao final da manhã (cheio de cores, de vozes), a passagem do tempo, a areia de uma praia, a poeira de uma estrada que não voltará a percorrer.

Pertencendo a um mundo em que cada minuto tem um preço e uma medida exacta, o viajante recupera a poesia, a inutilidade, os monumentos em ruínas, os papéis que hão-de ser arquivados fora da memória, as varandas dos hotéis, os instantes fugidios de prazer e de sexo e de clandestinidade. Ele é verdadeiramente um espião que vai e regressa para fazer um relatório acerca de um mundo suspeitado, amável, desejado. Nunca mais será o mesmo, ainda que se comporte da mesma maneira, ainda que não possa mudar – realmente – de personalidade. Mas mudou. Lá por dentro, onde as coisas importantes acontecem, ele mudou mesmo. Aprendeu a ser espião.

in Revista Volta ao Mundo - Fevereiro 2008

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