Elogio dos viajantes que nem sempre viajam
[Para Joan T.]
Viajar nem sempre é viajar; há viagens que arrancam o coração e há viagens que apenas mudam o horário do sono. Penalizo-me, desta vez, por tantas vezes ter desprezado a segunda das categorias – a classe de pessoas que circula no céu, desperta e ocupada, consultando laptops e blackberries, folheando dossiers e preenchendo espaços vazios da sua agenda com nomes de hotéis onde só pernoitarão, com nomes de pessoas com quem falarão uma só vez em encontros rápidos e superficiais em salas de que não recordarão nem a decoração, nem o cheiro, nem a luz que entra pela janela.
São os primeiros a sair dos aviões. Os primeiros a caminhar pelos corredores, ligando o telefone, olhando em frente como se o mundo lhes parecesse igual em qualquer latitude. Passo do desprezo à ternura, quando penso neles. Grande parte dos leitores da Volta ao Mundo há-de chamar-lhes «executivos» e pensará neles como viajantes que não viajam; que apenas passam de um aeroporto desconhecido para um aeroporto conhecido, de um hotel nos subúrbios para um hotel no centro das cidades – e cujo tempo livre é ocupado a dormir, se podem fazê-lo. Eu podia escrever sobre muitos deles, como personagens de um romance sobre o desperdício de viver e sobre a obrigação de cumprir um destino que às vezes – eu sei, ah, eu sei – lhes parece despedaçado ou quase inútil. Duzentas viagens de avião por ano a que correspondem pelo menos cem hotéis diferentes e trezentos nomes novos acumulados nas suas agendas. Um passeio furtivo nas ruas de uma cidade deserta. Compras apressadas com a lembrança de alguém. Insónias que despertam uma vigília inesperada e, muitas vezes, triste ou solitária. Um fuso horário seguido de outro, um nome que transportam, um risco desconhecido de luz no meio do céu e do crepúsculo que parece igual a todos os crepúsculos lá, no alto, ao lado do vazio das coisas. Um livro aberto, como se sabe – romances populares, poemas, guias de viagem. «Quem vê um, vê todos. Quem acompanha um, acompanha todos.» Que injustiça. Intervalos no ritmo de «executivo» em restaurantes que se recordam mais tarde. Eu podia escrever sobre muitos deles, captar-lhes aquele instante em que adormecem a meio de uma viagem, deixá-los reconhecer uma praça vazia (em Amesterdão, Bruxelas, Moscovo, Nova Iorque, Roma) em que nunca estiveram realmente – e sentir por eles a mesma ternura que se sente por um personagem de romance, por uma imagem abandonada. Recebem telefonemas a meio da noite, porque os fusos horários são estranhos. Ouvem a voz de um amor distante de que quase nunca estão realmente perto. Estão sempre em outro lugar, têm sempre uma mala preparada, um nome para repetir, um código de contacto com a vida que espera por eles noutra cidade.
Terão aventuras, desilusões? Escreverão diários íntimos, folhearão Margarita e o Mestre em Moscovo, à procura do Diabo? Lembrar-se-ão de Kafka nas ruas de Praga? Entrarão neste restaurante onde estiveram Dickens, Thackeray, Le Carré, Kingsley Amis, e recordarão a passagem do tempo? Imaginamos apenas que a sua roupa é igual à de milhares de outros solitários que procuram um táxi numa rua desconhecida. Outra injustiça. Não conhecemos os seus amores, as suas obsessões. Admiramo-nos muito quando descobrimos que são semelhantes às nossas. Quando se sentam à mesa e esperam por coisas que também esperamos: um pedaço de pão, a consolação ou a recompensa por uma viagem que não os leva como viajantes, que não os transforma como transforma a vida que passa por eles, lá, no céu ao lado do vazio. E sim, o mundo é muito pequeno, o mundo é muito grande, muito igual, muito desigual.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Março 2009
Viajar nem sempre é viajar; há viagens que arrancam o coração e há viagens que apenas mudam o horário do sono. Penalizo-me, desta vez, por tantas vezes ter desprezado a segunda das categorias – a classe de pessoas que circula no céu, desperta e ocupada, consultando laptops e blackberries, folheando dossiers e preenchendo espaços vazios da sua agenda com nomes de hotéis onde só pernoitarão, com nomes de pessoas com quem falarão uma só vez em encontros rápidos e superficiais em salas de que não recordarão nem a decoração, nem o cheiro, nem a luz que entra pela janela.
São os primeiros a sair dos aviões. Os primeiros a caminhar pelos corredores, ligando o telefone, olhando em frente como se o mundo lhes parecesse igual em qualquer latitude. Passo do desprezo à ternura, quando penso neles. Grande parte dos leitores da Volta ao Mundo há-de chamar-lhes «executivos» e pensará neles como viajantes que não viajam; que apenas passam de um aeroporto desconhecido para um aeroporto conhecido, de um hotel nos subúrbios para um hotel no centro das cidades – e cujo tempo livre é ocupado a dormir, se podem fazê-lo. Eu podia escrever sobre muitos deles, como personagens de um romance sobre o desperdício de viver e sobre a obrigação de cumprir um destino que às vezes – eu sei, ah, eu sei – lhes parece despedaçado ou quase inútil. Duzentas viagens de avião por ano a que correspondem pelo menos cem hotéis diferentes e trezentos nomes novos acumulados nas suas agendas. Um passeio furtivo nas ruas de uma cidade deserta. Compras apressadas com a lembrança de alguém. Insónias que despertam uma vigília inesperada e, muitas vezes, triste ou solitária. Um fuso horário seguido de outro, um nome que transportam, um risco desconhecido de luz no meio do céu e do crepúsculo que parece igual a todos os crepúsculos lá, no alto, ao lado do vazio das coisas. Um livro aberto, como se sabe – romances populares, poemas, guias de viagem. «Quem vê um, vê todos. Quem acompanha um, acompanha todos.» Que injustiça. Intervalos no ritmo de «executivo» em restaurantes que se recordam mais tarde. Eu podia escrever sobre muitos deles, captar-lhes aquele instante em que adormecem a meio de uma viagem, deixá-los reconhecer uma praça vazia (em Amesterdão, Bruxelas, Moscovo, Nova Iorque, Roma) em que nunca estiveram realmente – e sentir por eles a mesma ternura que se sente por um personagem de romance, por uma imagem abandonada. Recebem telefonemas a meio da noite, porque os fusos horários são estranhos. Ouvem a voz de um amor distante de que quase nunca estão realmente perto. Estão sempre em outro lugar, têm sempre uma mala preparada, um nome para repetir, um código de contacto com a vida que espera por eles noutra cidade.
Terão aventuras, desilusões? Escreverão diários íntimos, folhearão Margarita e o Mestre em Moscovo, à procura do Diabo? Lembrar-se-ão de Kafka nas ruas de Praga? Entrarão neste restaurante onde estiveram Dickens, Thackeray, Le Carré, Kingsley Amis, e recordarão a passagem do tempo? Imaginamos apenas que a sua roupa é igual à de milhares de outros solitários que procuram um táxi numa rua desconhecida. Outra injustiça. Não conhecemos os seus amores, as suas obsessões. Admiramo-nos muito quando descobrimos que são semelhantes às nossas. Quando se sentam à mesa e esperam por coisas que também esperamos: um pedaço de pão, a consolação ou a recompensa por uma viagem que não os leva como viajantes, que não os transforma como transforma a vida que passa por eles, lá, no céu ao lado do vazio. E sim, o mundo é muito pequeno, o mundo é muito grande, muito igual, muito desigual.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Março 2009
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