janeiro 05, 2009

Sob a luz do passado

A mais genuína comida romana serve-se no Sor Margherita, um restaurante popular nas portas do gueto judeu de Roma. Pelo meio das suas mesas divididas entre os visitantes de ocasião e os clientes habituais que não precisam de consultar o cardápio manuscrito do restaurante, passam os sabores dos agnolotti recheados e cobertos de manjericão fresco, ou da pasta e fagioli, do baccalá in guazzzetto, ou de carcioffo alla giudia. Mas também dos seus vinhos temperados e frios, essenciais.

Convém reter o momento porque a comida é uma metáfora do prazer que Roma concede ao visitante: pratos saborosos, suculentos, evocando as arqueologias gastronómicas do Mediterrâneo (reunidas na trilogia composta de farinha, de azeite e de tomate) – e passeios belíssimos, a pé, atravessando pontes e bairros que dispõem do passado como de um luxo acessível, próximo e desmascarado. Ninguém visita Roma sem passar por estes restaurantes minúsculos, barulhentos, onde tudo é artesanal (das massas aos doces, sem falar da informalidade que lhe está na base). E, depois, caminhar: porque conhecer Roma, só a pé – para que a ligação entre o passado e o presente resulte quase perfeita, luminosa, indecente.

Roma é uma das cidades mais amigáveis de toda a Europa. O seu aparente caos ordena o traçado das ruas, o estacionamento «criativo», a invisibilidade da angústia do romano típico que tanto frequenta os mercadini da Piazza Navona como conhece e enumera os museus centenários e deslumbrantes, a céu aberto, disponíveis e abertos em permanência. Esse caos dissimula-se como uma pose verdadeiramente romana: faz parte da alma da cidade, informal e fácil. Tão fácil como aceder a todos os seus lugares – da Praça de São Pedro ao Coliseu, de Sant'Angelo às pizarias de bairro, onde falamos de futebol e descobrimos ingredientes maravilhosos na sua simplicidade.

É, também por isso, a cidade europeia que mais me comoveu – fácil, atraente, informal. Com aquele linguajar simples (chamar a uma rua Via delle Zoccolette, Rua das Putinhas, é de uma amabilidade a toda a prova) para designar coisas simples, Roma bem podia ser uma lição para os europeus de pacotilha & carteirinha, fabricados às dúzias em Bruxelas e carregados de regulamentos para tudo. Se a Europa fosse construída à imagem de Roma, seríamos mais felizes, menos tristes, mais ligados às coisas essenciais, mais tolerantes, mais discretos. Aquela suavísisima anarquia à beira das águas do Mediterrâneo manda-nos que sejamos também mais cultos – porque a cultura não tem nada a ver com a acumulação de conhecimento ou com a esquizofrenia da contemporaneidade. Tem, antes, a ver com uma certa elegância – a forma como nos cumprimentamos, como nos abraçamos, como nos ligamos aos lugares e às paisagens. Sob a luz do passado, essa Roma maravilhosa não tem shoppings nem ruas excessivamente largas: privilegia o «mais pequeno», para que nos sintamos absorvidos pelos seus becos, pelas suas ruínas, sob a luz do passado que protege e não exclui nem hostiliza.

Ser saudado, em Roma (com aquele bon giorno! que se distribui com generosidade), é já uma forma de lhe pertencer – àquela paisagem de fontes, ruas estreitas de «luz tépida» e filtrada por ramagens de vasos na altura dos telhados, por poeiras que nos acompanham de um bairro a outro, como se flutuássemos, livres e malandros, com aquela explosão de malícia que só Roma pode permitir. Ao caminhar pelas suas ruas sem passeios, pelas suas praças generosas, Roma bem merece outra visita.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Janeiro 2009

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