Recordo bem o aviso de uma amiga, dois ou três dias antes: «Cuidado com a malária, não bebas whisky com gelo.» É claro que eu bebi whisky com gelo durante toda a noite numa barraquinha do passeio mesmo diante do hotel. A brisa salgada, que vinha do rio, ajudou, o calor ajudou, a companhia dos que iam chegando também ajudou bastante.
Acordei, no dia seguinte, com a sensação de o mundo ter recomeçado diante daquela visão do Indico, azul e brilhante, vasto, cheio de barcos, de redes de pesca, de miúdos que se escapavam por entre as pedras do cais, brincando a meio da manhã. Quelimane, era só Quelimane. Ou seja, a Zambézia, o rio dos Bons Sinais, a praia da Zalala, a vontade de espreitar as montanhas mágicas em redor. E a cidade, Quelimane, uma espécie de paraíso para quem, com eu, vinha de atravessar a serra da Morrumbala, verde, desenhada sobre um fundo de cartolina, mas desaconselhável quando vêm as trovoadas. Essa imagem perseguiu-me durante semanas: o risco dos relâmpagos num céu negro, caindo sobre a terra, diante de um jipe desconjuntado. De modo que Quelimane me parecia um paraíso, mesmo depois de as chuvas terem derrubado muros, inundado as ruas, descolorido o mar, esse Índico azul e brilhante a que se chegava por estradas improváveis.
Enquanto saía e não saía da cidade (e eu teria de sair, para o Maputo), entretinha-me em pequenas coisas: vaguear pela zona do porto, ir aos restaurantes de peixe, sentar-me a escrever, reconstituir a passagem do tempo na cidade, imaginando como Vasco da Gama teria chegado até ali, entrando pelo rio acima. A temporada de Quelimane não foi voluntária; na verdade, não havia voos durante essa semana e eu ficara prisioneiro até que o recepcionista, no hotel, me aconselhou a ir para o aeroporto à espera de boleia. Europeu e cumpridor, a ideia pareceu-me tão absurda que segui o conselho na madrugada seguinte. No aeroporto, depois de ter feito saber que precisava de partir para o Maputo, disseram-me que o melhor era aguardar – um avião ia para o Norte daí a pouco. «Mas eu quero ir para o Sul.»
O homem, um velho goês de rosto sempre sorridente, nem respondeu. Encolheu os ombros e limitou-se a deixar-me para trás: «Em tempos de aperto, Sul e Norte são mais ou menos no mesmo sítio.»
Ao fim de uma hora apareceu o meu salvador – um homem fardado de branco (ele falava com um sotaque vagamente africânder) e que me oferecia boleia para Maputo, caso estivesse disposto a fazer uma paragem curta no Songo – ao pé de Cabora Bassa, desenhei mentalmente o mapa de Moçambique e situei Tete, as montanhas e as fronteiras com a Zâmbia, o Malawi e, em querendo, o Zimbabwe. Pareceu-me óptimo; no fundo, tratava-se de fazer uma viagem para o Sul mas avançando para o Norte. Não me arrependi. Ao fim de umas horas, estávamos no Songo – e ao cair do dia aproximávamo-nos de Maputo. Mas estaria bem se tivéssemos aterrado em Dar-es-Salaam, em Balantyre, nas Comores ou nos arredores de Antananarivo – o piloto, um filho de portugueses que só tinha estado uma vez em Portugal (possuía, claro, passaporte sul-africano) sobrevoou o mapa da savana com uma perícia que não vem nos livros, além de não ter achado despropositada a ideia de ter dado boleia a um desconhecido estacionado em Quelimane.
De certa maneira, foi uma das viagens da minha vida – um sobressalto que incendiou o meu mapa pessoal de África, onde eu não sabia que se podia pedir boleia de avião, nem viajar para Sul fazendo escala no Norte.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Agosto 2009Etiquetas: Volta ao mundo