Os europeus procuraram sempre, ao longo dos séculos – e por mais divisões que tivessem estabelecido através de fronteiras ou guerras periódicas –, estabelecer uma espécie de denominador comum de si mesmos. Não se tratava de procurar um padrão médio para as mulheres ou os homens europeus, mas sim uma espécie de paisagem urbana que reunisse dentro dos seus muros a maior parte das características que fizeram a Europa ser como era. Antuérpia, por exemplo – é um modelo dessa Europa urbana, aberta às rotas marítimas, permeável à chegada e partida de negociantes e de intelectuais ou artistas, de exilados e de poderosos. O seu modelo era o enriquecimento. Financeiro, acima de tudo; mas também cultural, ou seja, uma espécie de rumor contínuo que habitou as suas ruas desde a Idade Média, recebendo e protegendo foragidos do Levante, judeus ibéricos, centro-europeus perseguidos, marinheiros sem destino, professores sem cátedra.
Ainda hoje, ao caminhar pelas suas ruas, Antuérpia revela esse empedrado histórico marcado por gente que foi recebida com desconfiança mas sem ódio, com leis e nunca pela arbitrariedade das prisões. Gracia Nasi, «a Senhora», a judia portuguesa que fez da sua vida uma história de fugas e de reencontros (de Lisboa até lá, de de lá para a velha Constantinopla, depois de Veneza e antes da Terra Prometida), foi uma delas. Pelos séculos fora, a melhor Europa foi um território de silêncio e de refúgio aberto às peregrinações e aos apátridas que encontraram aqui um lugar para viver.
A melhor forma de viajar pela Europa continua a ser, portanto, ao longo da paisagem. Ou seja, de carro e de comboio, acompanhando os declives e as mudanças, a profundidade dos vales e o desenho das montanhas – para, como qualquer geógrafo amador, perceber como as diferenças se esbatem suavemente na passagem de uma terra a outra. Mais: para entender como as cidades da Europa desenham um mapa de circulação de energia e de cultura, sempre em perpétua comunicação.
Temos, todos, uma ideia de Europa. Ou a laboriosa Europa do Norte, fundada sobre a ética do trabalho e da riqueza; ou a culta Europa Central (o velho sonho de uma Mittleuropa que albergou os grandes artistas e intelectuais – e os protegeu); ou a Europa do Sul que, melhor do que qualquer outro território, conservou as culturas do Levante, as torrentes migratórias e religiosas do Mediterrâneo; ou, ainda, a Europa do Leste, menos conhecida hoje por razões políticas, mas que lentamente se ergue como um prodígio que revela culturas atentas e milenares, cruzando o seu voo de águia sobre os territórios da Ásia. É isso que é a Europa: um lugar onde as diferenças se esbatem e onde as semelhanças se atenuam. Percorrendo a saborosa e velha Itália, as ruínas do Sul, as planícies de arquitectura suave do Norte, ouve-se uma música que nunca se deixou assimilar e que nunca cessou de fazer-se ouvir como uma tentação harmónica. No meio desse «esplendor do caos» (a expressão é de Eduardo Lourenço), a Europa é um espelho do mundo. Causaria triste impressão, por isso, se tentássemos limitar a Europa a qualquer uma das suas paisagens. A Sevilha europeia, em permanente cruzamento com o velho al'Andalus; a luminosa e mediterrânica Grécia onde se escutam os ecos vindos do Oriente, muito para lá do Bósforo; a verde Escandinávia onde os seus mitos acordam em nós o desejo de uma tranquilidade sem designação – isso é a Europa, essa possibilidade de ser diferente em harmonia. Viajando de carro ou de comboio, mais do que usando uma mesma moeda, vemos como se estabelecem canais de comunicação que as épocas de crise interrompem mas que, do fundo da História, regressa como um sinal de esplendor. E é isso que faz de nós, europeus, os piores e os melhores de nós mesmos.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Novembro 2008Etiquetas: Volta ao mundo