novembro 11, 2004

Arafat

Não, não vou chorar lágrimas de crocodilo. Não vou deixar de reconhecer o seu papel no Médio Oriente e na chamada "causa palestiniana". É provável que seja um herói. Mas não vou tecer um elogio fúnebre. Se os palestinianos ainda não têm um país independente, devem-no também a ele, que desfez acordos e mentiu descaradamente sobre os seus próprios planos, autorizando comandos suicidas formados por adolescentes e treino militar às crianças de Gaza. Se ainda há israelitas que se opõem à constituição de um estado palestiniano (e são muito poucos) devem-no muito a ele, que autorizou e mandou executar civis com a frieza de um "grande líder", condenando massacres em inglês e incentivando-os em árabe. Não aceito a encomenda de um Arafat transformado em anjo - desenho que, repetidamente, as televisões vão pintar, durante as semanas mais próximas, e que os jornais vão reter em colunas laudatórias, rendidas diante da morte do "grande estadista".

Quem já viu destroços de autocarros israelitas e pedaços de corpos retirados de restaurantes destruídos à bomba em ruas de Jerusalém pode, sem dúvida, calar a voz e respeitar a dor dos que choram Arafat - e perguntar-se sobre os dias que vêm. Mas não fará mais do que isso.

Eu vi a pizzaria Sbarro, de Jerusalém, destruída por uma bomba da Fatah. Vi os jovens que dançavam na discoteca Dolphinarium, em Telavive, dias antes de ser destruída por um suicida recrutado pela Fatah e enviado pelo Hamas. Vi o restaurante perto de Haifa (a cidade da tolerância), onde centenas de judeus celebravam a sua Páscoa, e que os militantes da Fatah não hesitaram em destruir à bomba. Lembro-me de Itzhak Rabin confiar em Arafat depois dos acordos de Camp David - e de Arafat ter voltado atrás. Vi o pequeno mercado ao lado da Jaffa Road, em Jerusalém, semeado de corpos depois de um ataque organizado por militantes do Hamas que Arafat libertara dias antes.

Ouvi Ehud Barak, em Jerusalém, falar com optimismo depois dos acordos de Oslo que Arafat rasgou depois de apertar a mão ao primeiro-ministro de Israel - abrindo as portas à vitória eleitoral de Ariel Sharon e da ala direita do Likud, um festim para os extremistas do Hamas e da Jihad.

Quem viu esses destroços sabe que um estado palestiniano democrático seria impossível com Arafat.

E, por isso, dificilmente chorará a sua morte. É doloroso escrever isso: não chorar a sua morte. Mas a verdade é que, tendo o dever de respeitar o vazio da morte, temos também o dever de não a usar para esconder as feridas abertas. Arafat não se transformou apenas numa peça dispensável - transformou-se num obstáculo à paz e à criação de um estado palestiniano democrático, arrastando o seu povo para uma guerra de fanáticos alimentada pelos ditadores da região. Ao mesmo tempo, criou um regime de terror nos media palestinianos, acumulou uma fortuna pessoal que ultrapassa de longe os 300 milhões de dólares (segundo a "Forbes") - grande parte dela desviada dos cofres da Autoridade Palestiniana -, autorizou execuções sumárias e fuzilamentos regulares, apoiou-se em líderes religiosos que pregavam nas mesquitas de Gaza sobre o dever de matar judeus, transformou a Autoridade Palestiniana num aparelho corrupto e voraz.

É forçoso reconhecer que desaparece um líder e uma figura histórica. Mas o reconhecimento do facto não implica que se seja desleal para com a memória e as suas mágoas.

Jornal de Notícias, 11 de Novembro de 2004

novembro 04, 2004

América Van Gogh

Não há, ao contrário do que se esperava, grandes lições a tirar das eleições norte-americanas. O dado mais importante a reter é, para já, a vantagem indesmentível de George W. Bush no chamado "voto popular".

Mas, de entre os derrotados, há a considerar a Imprensa - e a ideia de que tem todo o poder e toda a autoridade do seu lado. Pode continuar a reivindicar a autoridade, mas o seu poder sofreu um duro revés. A verdade é que isso não tem significado substancial; a opinião da Imprensa não tem de ir a votos ou de sujeitar-se a sondagens, como se sabe - os seus editoriais não são "referendáveis" e essa é a vantagem da Imprensa livre. O problema é quando a Imprensa acredita na prevalência do seu voto sobre o voto dos eleitores.

Que os jornais do Mundo inteiro - sobretudo da Europa - assumissem, com uma clareza total, o seu apoio ao senador John Kerry não causa grande espanto. Seria excessivo pedir-lhes contenção e até imparcialidade depois de, ao longo dos últimos dois anos, a generalidade da Imprensa ter demonizado George W. Bush e ter desenhado do presidente americano uma caricatura pouco recomendável. Muitas vezes, uma caricatura irresponsável e apenas anedótica (sustentada por propaganda da mais básica, por lugares-comuns e banalidades); de outras, no entanto, houve um retrato de Bush assente em argumentos mais do que em ressentimentos. Só assim se compreende que órgãos de Imprensa como a "The Economist" ou o "Financial Times" tivessem assumido o apoio à candidatura de John Kerry.

Na base desses apoios estão questões de consciência, matéria política e, também, preconceitos - absurdos ou não. E uma ideia de qual "devia ser" o papel da América no Mundo. Essas tomadas de posição são admissíveis, evidentemente. O Mundo transformou-se num imenso laboratório de especialistas em "questões americanas" que puderam expor os seus ódios à América, o seu tradicional antiamericanismo e todo o género de ideias racistas.

Kerry seria, por princípio, um bom presidente americano para esta Europa. Seria um presidente mais cooperativo em termos atlânticos, mostraria uma face menos arrogante ou menos belicista (embora a política para o Médio Oriente não se alterasse) e é também provável que diminuísse o ressentimento contra a América. Seria, por outro lado, um presidente mais proteccionista em matéria económica e mais hesitante em matéria de segurança. A sua vitória seria festejada por democratas, liberais e pessoas decentes - e por muitos inimigos da liberdade. Uma contradição insolúvel. Mas eu não sou americano. Não votei nos EUA.

Espero apenas que os jornais portugueses que assumiram claramente a defesa de Kerry se sintam obrigados a fazer o mesmo às vésperas das próximas eleições gerais no seu país.

O cineasta holandês Théo Van Gogh foi assassinado numa rua de Amesterdão, a capital onde vive grande parte do milhão de muçulmanos na Holanda (cerca de 5,5% da população). Van Gogh e a sua mulher, etíope, já tinham recebido ameaças de morte. Ele era o realizador de uma curta-metragem sobre a violência exercida sobre as mulheres no Islão e em nome do Islão. As "fatwas" do Islão radical não conhecem fronteiras e a sua condenação não expira senão num banho de sangue. Van Gogh não é a primeira vítima do fundamentalismo; há milhões de vítimas dos imãs radicais e do Alcorão lido letra a letra. Mas o nojo profundo que me inspira o papel do marroquino que defendeu o Islão a tiros e facadas só encontra paralelo naqueles que, ainda ontem, encontraram justificação ou argumentos para contemporizar com o crime. Parece que Bush também é culpado disto.

Jornal de Notícias - 4 de Novembro de 2004